Os cinemas brasileiros recebem esta semana a estreia de Carro Rei (2021), uma produção da ambiciosa da diretora Renata Pinheiro (de Amor, Plástico e Barulho). Ela cria uma fábula situada no agreste pernambucano, onde o garoto Uno (Luciano Pedro Jr.) tem o dom de comunicar com carros desde o nascimento. Esta habilidade será importante quando um carro começa a manifestar ideias totalitárias, conquistando vários humanos e máquinas ao seu redor.
Neste contexto, Matheus Nachtergaele interpreta Zé Macaco, um mecânico seduzido pelas ideias extremistas, enquanto Jules Elting vive Mercedes, uma figura estrangeira que questiona as relações identitárias no local conservador. Em oposição à perigosa tecnologia, Uno começa a enxergar o potencial da agroecologia como contraponto à força das máquinas. O Meio Amargo conversou com Jules Elting e Luciano Pedro Jr. sobre este projeto tão especial:
Que papel Uno e Mercedes desempenham dentro desta estrutura social bastante particular?
Luciano Pedro Jr.: O Uno é um menino com a habilidade bem especial de falar com os carros. Ele cresce no Agreste, na cidade de Caruaru. Mas depois de um tempo, ele se vê afastado do universo dos carros e parte para estudar a agroecologia na universidade. Isso contraria a vontade do pai, que queria que ele fizesse administração, por exemplo, para cuidar da frota de táxis da família. A partir disso, surge um grande embate na família que depende dele para manter o negócio estável. Mas o desejo do Uno é estudar a natureza, entender mais sobre a agroecologia. Esse é o grande choque da personagem.
Jules Elting: Não sabemos de onde Mercedes vem. Ela não é brasileira, mas o filme nunca explica de onde ela vem. A gente entende que ela é uma pessoa que viaja pelo mundo, sozinha, e não se prende a família ou outra estrutura social. É explicado brevemente que ela para em lugares onde o índice de violência contra a mulher é muito alto. Além disso, ela dá oficinas de pole dance em ONGs. À noite, ela faz intervenções públicas bem doidas: perto dessas estátuas que simbolizam o patriarcado, ela sobe e carimba a palavra “morte” com uma calcinha de metal. São intervenções políticas, ilegais. No filme, ela tinha acabado de chegar em Caruaru, e conhece as pessoas. Ela se alia aos habitantes, até conhecer o carro. O Uno e a Mercedes são os únicos personagens que entendem o carro sem a necessidade de tradução. Mas os nossos personagens quase nunca se encontram. Mesmo assim, tem uma ligação sutil entre eles.
São dois personagens de transição entre mundos diferentes. Eles funcionam como elos.
Jules Elting: Eles também efetuam um elo social, de fato. São personagens que atravessam classes sociais diferentes, entre onde nascem e para onde vão.
Luciano Pedro Jr.: Entra uma questão de gênero, e também racial neste contexto, combinada com a tecnologia. Como estes corpos lidam com a tecnologia? De que maneira isso atravessa cada um, e como reagem? Mesmo que isso não esteja bem marcado no filme, ele está presente na tela.
Jules Elting: São personagens de revolta. Agora que realmente percebo isso! Os dois têm muita raiva, um desconforto com as circunstâncias dadas, com os limites e regras.
Luciano Pedro Jr.: Isso vale para o Uno. Quando ele reencontra o carro, existe uma raiva expressa ali. Ele não queria mais lidar com o carro, mas volta a encontrar o melhor amigo que tinha, e que acaba traindo o Uno. É um relacionamento perverso.
De que maneira o filme representa corpos, desejos e gêneros?
Jules Elting: Num nível pessoal, tem algo muito interessante. Filmamos Carro Rei antes do meu coming out enquanto pessoa trans não-binária. Quando terminamos, eu avisei à equipe de meu novo nome. Hoje penso que Mercedes também poderia ser uma pessoa não-binária. Ela é descrita no roteiro como mulher cis, mas imprimi muito de minha identidade nela. Esta personagem também é um pouco “ele”, também é extraterrestre. Ela não se sente parte daquele meio. Mercedes se sente estranha com o resto dos humanos, mas tem grande amor por eles. Para ela, seria muito natural a ligação com carros, Mercedes não vê nada de novo nisso.
Luciano Pedro Jr.: O filme naturaliza a questão do desejo, do tesão. Em uma das cenas, Uno pergunta se é a primeira vez que Mercedes faz sexo com carros. Ela responde que não. O filme não tenta sugerir a possibilidade de ter desejo em coisas não-humanas. Isso já existe. O tempo inteiro lidamos com tecnologias, desde o celular até o vibrador. Coisas tecnológicas estão se humanizando. Uma das grandes coisas que o filme me traz é o tema do desejo como potência. As coisas parecem ter alma, que se despertam na história. Objetos estão sendo humanizados, e os humanos estão entendendo mais do universo da máquina. É um processo reverso.
Jules Elting: Aliás, muitas pessoas acham que Uno e Amora são um casal. Pensamos isso porque nosso olhar é heteronormativo. Eu também vi a trama e pensei que fossem um casal. Mas a Renata nos disse que nenhum momento aponta para esse sentido. Temos o automatismo de ver um garoto e uma garota como casal em potencial. Gosto que eles tenham uma amizade longe dos clichês. O filme desafia o olhar heteronormativo em cenas de sexo, e na representação do amor romântico.
Luciano Pedro Jr.: Carro Rei também desafia as masculinidades. Zé Macaco é um homem mecânico que faz pole dance. Isso confunde a nossa cabeça, a partir de leituras predispostas. É um filme desconstruído, que levanta conceitos para serem questionados. Ele lida com nossas expectativas, então nos dá uma rasteira. Não é porque menino e menina são amigos que precisam se tornar um casal. Eles poderiam inclusive se beijar sem serem um casal.
Jules Elting: Aliás, Uno foi criado por dois homens, o que desafia nossas percepções.
Podemos ler Carro Rei como representação política do Brasil contemporâneo?
Luciano Pedro Jr.: Com certeza. O filme levanta um debate sobre o fascismo no Brasil. É indiscutível o quanto as ideias totalitárias cresceram nos últimos anos. Regredimos muito. Este fascismo está tomando conta das mentalidades de muitos brasileiros. O carro tem essa simbologia: no meu ver, não tem nada que simbolize melhor a ascensão social para o brasileiro do que a figura do carro. O primeiro presente que ganhamos ao passar para a fase adulta é a carteira de habilitação. Quando conquistamos o carro, isso se torna um símbolo de conquista social, de ordem individual. O individualismo tem tomado conta do país. Carro Rei entende que a juventude tem a sua potência, e está estudando meios de romper com este pensamento. Uno e Amora estão dentro da universidade com um compromisso social. Eles querem mudar a perspectiva do agronegócio. Mas existem mecanismos mais sustentáveis, que possivelmente serão a saída para o futuro. Carro Rei sintetiza o Brasil de hoje, mas não no sentido binário de opor o bem ao mal. A tecnologia não representa algo negativo em si: quando ela é utilizada a nosso favor, podemos ganhar muito com isso.
Jules Elting: O filme não fala claramente quais são as causas do mal, e nem oferece soluções exatas. Mesmo assim, ele indica alguns caminhos. Acho interessante que as duas personagens femininas, através do corpo e da força da natureza, consigam apresentar perspectivas de mudança. Isso é muito bonito, especialmente no Brasil de hoje, em relação aos povos originários. Precisamos nos reconectar, e tem o elemento das sementes, do sangue, do corpo físico. Existe algo muito profundo nesta representação, algo que nem foi analisado em tanta profundidade pela crítica de cinema até agora.
Luciano Pedro Jr.: Enquanto discussão, esse é um filme muito brasileiro, inclusive na estética. Meu pai brincou que a oficina do filme era bem precária, e ele imaginava encontrar algo mais high-tech, mais estadunidense. Mas essa é a nossa estética. É algo mambembe: como desenvolvemos a tecnologia a partir de tão pouco?
Jules Elting: Tenho muita ansiedade para saber como o público brasileiro vai reagir. Já encontrei o público de Londres, mas as pessoas fora do Brasil veem outra coisa. Talvez eles não cheguem ao cerne da história. Este projeto foi feito para ser visto no Brasil.
As nossas representações mais potentes do Brasil têm vindo do cinema distópico.
Luciano Pedro Jr.: Quando os discursos são feitos muito diretamente, eles parecem não surtir tanto efeito quanto se gostaria. Então a gente parte para o cinema de gênero, para o terror, a fantasia, a realidade mágica. Pegamos coisas suspensas para representar nossa sociedade. O gênero pode extrapolar as representações, ao invés de ficar na base clássica do discurso. Desde os diálogos até a imagem em tela, Carro Rei é feito em Caruaru, no agreste pernambucano, mas ele traz uma realidade suspensa. Ele parece Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão, porque este universo é posto sobre a mesa, e depois você capta aquilo que reflete o seu dia a dia. A arte não está aí para nos dizer o que fazer. O gênero é uma boa ferramenta para pensar nosso lugar social.
Jules Elting: Bom, eu não sou uma pessoa brasileira, e não vivi meus últimos quatro anos aqui. Falo um pouco de fora, mas nesses tempos políticos, é preciso inventar códigos, encontrar uma linguagem codificada. Na ditadura, as pessoas criavam novos códigos na música, nos filmes. O dia a dia está tão duro que o fantástico aponta saídas, leituras diferentes do real. Isso traz um distanciamento.
Luciano Pedro Jr.: O Saramago fala isso, inclusive: você precisa sair da ilha para ver a ilha. Isso sintetiza o nosso filme muito bem.
Que percepção tiveram do filme quando o viram finalizado pela primeira vez?
Luciano Pedro Jr.: É algo muito diferente dentro do nosso cinema. Não estamos falando em inaugurar nada, mas em recombinar elementos existentes para oferecer algo que desperta várias discussões.
Jules Elting: Também é um filme que atinge pessoas muito diferentes. Você pode ser estimulado por Carro Rei intelectualmente. Penso nos cinéfilos que vão ver referências, camadas. Mas imagino o olhar de alguém que não tem o costume de ir ao cinema, e mesmo assim ainda pode embarcar nessa história, se identificar com os personagens. O filme fala com um público amplo.
Luciano Pedro Jr.: Quando ele passou no Canal Brasil, pelo Festival de Gramado, percebemos isso. Eu me lembro de uma empregada doméstica que ligou para a minha mãe para dizer que assistiu ao filme e se emocionou. É claro que, quando um filme vai para a televisão, ele alcança mais pessoas do que na sala de cinema.
Jules Elting: E também existe o poder de Matheus Nachtergaele! Como artista, ele tem um apelo enorme. É uma das figuras mais populares e queridas do nosso audiovisual.
Luciano Pedro Jr.: Exato. É interessante quando o filme atinge um nível popular. No fundo, fazemos cinema para isso: chegar ao público em geral. Tinha certo receio, porque sei que o filme é ousado em algumas cenas. Pensava em como meu pai e minha mãe iam reagir ao filme, porque tem uma pessoa fazendo sexo com um carro! Imagino os dois pensando: “Onde é que eu me meti, minha gente?”. Mas depois as coisas se acalmam. Isso é uma coisa que existe, afinal. Nesse sentido, o filme é inteligente: para mim, o drama que não faz rir é péssimo; ele fica um drama pelo drama. Precisamos de alívios cômicos para sentir a densidade das coisas. Algumas cenas do Zé Macaco são bizarras! Quando vemos os carros querendo tomar conta, começamos a sentir que talvez não seja tão engraçado assim. Pensamos: será que eu devo rir disso?
Jules Elting: Durante as filmagens, eu vi pela primeira vez um vídeo do atual presidente. Eu ri, porque pensei: essa pessoa não pode ser real. Tem que ser piada. Existe esse tipo de reação também, de inconformidade.
Luciano Pedro Jr.: Estamos borrando fronteiras ali. É o real e a ficção, tudo junto ao mesmo tempo, a serviço de uma história a ser contada.