É curioso que um documentário servindo de rememoração e homenagem à Semana de Arte Moderna se destaque, em primeiro lugar, pela estética ao invés do tema. 22 em XXI (2022) parte de um leque bastante variado de imagens — seja os inúmeros planos aéreos com drones pela cidade de São Paulo, as fotografias da época, as entrevistas elaboradas com uma luz cuidadosa, e outras, de cuidado ínfimo com a qualidade da imagem. Os olhos demoram um pouco a se situar nesta pluralidade de texturas, formas e meios de comunicação. No início, parece haver mais de um filme dentro do filme.
Os letreiros alertam ao fato que, devido à Covid-19, algumas entrevistas precisaram ser feitas por Skype. Por isso, enquanto Maria Adelaide Amaral, José Miguel Wisnik, Hélio Menezes e José Celso Martinez Corrêa se expressam em imagens de fotografia impecável, com profundidade de campo reduzida e intenso cuidado com cores e luzes; Pedro Duarte, Fred Coelho, Antônio Risério e Ruy Castro têm suas aparições prejudicadas pela pixelização, a má captação de som e as luzes fracas do cômodo onde se encontram.
Compreende-se que a pandemia tenha implicado em obstáculos de produção mas, ao mesmo tempo, é difícil pensar que os criadores não poderiam obter registros mais cuidadosos de seus entrevistados, mesmo à distância. Assim, os dois estilos extremos ressaltam o abismo que os separa.
O diretor Hélio Goldsztejn demonstra um esforço palpável em atribuir uma dinâmica ágil aos talking heads, ou “cabeças falantes”, quando os personagens apenas explicam o tema central à câmera, sentados, e geralmente posicionados em frente às habituais estantes de livros visando representar erudição.
Ele investe em múltiplos ângulos para cada conversa, posicionando os especialistas ora no centro exato do enquadramento, ora nos terços do quadro, optando por alguns plongées e contra-plongées. O formato tradicional segue em pleno vigor, porém preocupado em não se saturar esteticamente.
Quando os olhos se acostumam, o espectador pode enfim prestar atenção às valiosas discussões trazidas por músicos, antropólogos, historiadores e intelectuais convidados ao projeto. O cineasta possui o mérito de deixar seus personagens confortáveis para conversarem de maneira despojada, demonstrando amplo domínio do tema, numa conversa aparentemente informal.
A naturalidade de Wisnik ao veicular pensamentos complexos, a intimidade de Maria Adelaide Amaral com os personagens e a fala apaixonada de Fred Coelho servem a contextualizar a Semana de Arte Moderna, refletindo sobre suas consequências, limitações e sobre o impacto neste Brasil governado por uma extrema-direita avessa à ciência e às artes.
Ainda mais preciosas são as discussões que ultrapassam o discurso habitual a respeito do modernismo. Emicida e Hélio Menezes oferecem pontos de vista preciosos a respeito dos indivíduos negros enquanto objetos ou sujeitos dos quadros, questionando o possível viés racista das obras de Tarsila do Amaral, e a necessidade de estudar este ponto de vista, ao invés de recalcá-lo — ou “cancelá-lo”, para utilizar um termo contemporâneo.
O cineasta possui o mérito de deixar seus personagens confortáveis para conversarem de maneira despojada.
Jerá Guarani fornece um contraponto ao olhar branco, e inspirado em referenciais europeus, para a maneira como as populações indígenas foram retratadas. O esforço em expandir o ponto de vista, permitindo questionar o valor da Semana de Arte Moderna, ao invés de apenas aplaudi-la, resulta nos melhores aspectos da obra.
Em contrapartida, as dramatizações encarregam-se, de longe, pelo aspecto mais fraco do filme. Anderson Negreiro, Erika Puga, Marcelo Diaz e Maria Manoella são dirigidos de maneira engessadíssima, com falas que mal cabem na boca nos atores. Não há conflitos nem interação palpável para os personagens limitados a explicar suas intenções um ao outro, de maneira escolar, conferindo atenção excessiva às pausas, vírgulas e explicações retóricas.
Pobres Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfatti fictícios, cuja função em cena se resume a escutar calados o que seus colegas têm a dizer sobre si mesmos. É visível a dificuldade de cada ator-ouvinte a ocupar a cena, visto que são desprovidos de conflitos ou objetivos dramatúrgicos.
Por isso, cada vez que a montagem volta às pequenas cenas, muitas delas com poucos segundos de duração, a experiência se enfraquece. O quarteto de bons atores interpreta menos seus referentes históricos do que uma versão escolar e resumida dos mesmos. Curiosamente, o caráter mais explicativo do filme reside nestes instantes, ao invés das falas de intelectuais.
Felizmente, este segmento não retira os méritos do restante do projeto, bem estruturado e desenvolvido. Fugindo a letreiros e capítulos distintos, a obra percorre o trabalho dos principais pintores e arquitetos, abrindo espaço para evocar a influência do movimento na música e cinema brasileiros. As discussões fluem com naturalidade de um tópico ao seguinte, permitindo inclusive divergências internas dos depoentes.
Talvez algumas participações sejam questionáveis: os descendentes de artistas modernistas limitam-se a atenuar as críticas efetuadas aos tios e avós, esquivando-se das críticas severas de Monteiro Lobato e da acusação de baixa formação cultural de Oswald de Andrade. Ressalvas à parte, 22 em XXI consegue resgatar a Semana de Arte Moderna e o modernismo para além da mera constatação de sua existência.
A narrativa explora origens, motivações, influências, consequências e legado desta concepção, dentro de um formato sucinto que aproveita tanto as potencialidades da televisão quanto os recursos de linguagem específicos do cinema.