A Boa Mãe (2021)

“Enquanto estiver de pé, ficarei firme”

título original (ano)
Bonne Mère (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
99 minutos
direção
Hafsia Herzi
elenco
Halima Benhamed, Sabrina Benhamed, Jawed Hannachi Herzi, Mourad Tahar Boussatha, Malik Bouchenaf, Justine Grégory, Maria Benhamed, Denise Giullo, Noémie Casari, Waga Kodjinon Marthe Lobé, Lila Allouche, Jean-Marc Fiore
visto em
Cinemas
Distribuição
Zeta Filmes

A introdução deste drama constitui um exemplo perfeito do que se convencionou chamar “filme de personagem”: a câmera acompanha Nora (Halima Benhamed) saindo de casa, cedo de manhã. Sem uma palavra sequer, a mulher se arruma, fecha a porta, desce as escadas, vai até o ponto de ônibus e pega o transporte público. Chega ao trabalho, arruma-se para fazer faxina em aviões no aeroporto. A imagem nunca se desgruda de seu rosto calmo, de sua impressão de cansaço misturada a serenidade. 

O espectador pode ter a impressão de que o olhar será restrito a esta mulher, descrito pelo título brasileiro como “a” boa mãe. O nome original, “Boa Mãe”, estende-se a outras mulheres da narrativa e permite questionar o próprio conceito de maternidade, ao invés de descrever somente a protagonista. De qualquer modo, a diretora e roteirista Hafsia Herzi, mais conhecida como atriz de filmes como O Segredo do Grão (2007), possui uma ambição mais ampla. Conforme a narrativa avança, serão apresentados sem pressa os filhos, netos, colegas de trabalho, vizinhos. 

Gradativamente, a narrativa efetua um panorama amplo das periferias francesas, habitadas especialmente por cidadãos de baixa renda, de origem árabe e latina. As dezenas de vivências são costuradas por Nora, mulher que perambula por diferentes núcleos sociais, bairros e espaços. O olhar desta avó serve como porta de entrada a uma representação generosa da França contemporânea, longe do alarmismo e da condescendência em igual medida. A pobreza crônica destes espaços jamais é acatada de maneira cômoda pelos moradores.

Uma das grandes belezas deste projeto se encontra nesta representação da política do dia a dia, tanto moral quanto constitucional. A cineasta encontra um equilíbrio precioso neste painel socioeconômico, fugindo à espetacularização da miséria, e também ao otimismo ingênuo quanto às melhorias futuras. Os personagens se viram como podem: a avó contrária às drogas acaba comprando um pouco de haxixe ao filho que sofre na prisão; a jovem mãe em dificuldade faz bicos como dominatrix; o filho de uma senhora idosa, cuidada por Nora, dá um pouquinho de dinheiro à heroína, como recompensa simbólica e insignificante por um cuidado de muitos anos.

O roteiro e a mise en scène se mostram excelentes no aspecto de crônica cotidiana. As pequenas mentiras entre familiares, as malandragens, as provocações transbordam em cada cena, marcada por uma naturalidade espantosa. As reuniões entre colegas faxineiros na sala de descanso, brincando uns com os outros, portam um tipo de interação e afeto raramente construído de maneira verossímil no cinema. De mesmo modo, os jantares em família, regados a sarcasmo, traduzem a aparência de uma família de fácil identificação. Herzi domina com impressionante facilidade as dinâmicas de grupo.

Um cinema de aparência simples, porém muito sofisticado em linguagem, ritmo e controle dos espaços. […] Ainda mais impressionante é o trabalho de Halima Benhamed no papel principal.

Nestas sequências, sobressaem-se as falas de aparência improvisada e a coreografia discreta, porém atenta da câmera (que salta de maneira invisível de um rosto ao outro, sem chamar atenção às peripécias da montagem). Trata-se de um cinema de aparência simples, porém muito sofisticado em linguagem, ritmo e controle dos espaços. Ao contrário das dinâmicas do caos promovidas por Xavier Dolan e Maïwenn, para quem, quanto mais gritos, melhor, aqui a imagem se organiza com tranquilidade e respiro. O silêncio vale tanto quanto as falas.

Ainda mais impressionante é o trabalho de Halima Benhamed no papel principal. A excelente atriz transmite a impressão de profundo conhecimento daquelas ações (ela aparenta realmente desempenhar aquelas tarefas cotidianas), manifestando sua indignação com uma advogada abusiva e com os filhos preguiçosos, sem alterar o tom da voz. A expressão perturbadora no rosto da mulher, quando escuta a notícia da gravidez de uma colega, carrega um universo inteiro de sensações em questão de segundos. 

Ela consegue compor um ponto de vista misto em relação à maternidade, entre afeto e dureza. Esqueça a imagem de mães-coragem, que se sacrificam e se debulham em lágrimas pelos filhos sofridos. Aqui, as decisões difíceis (a compra da droga, a venda das joias) são efetuadas em silêncio, e o eventual descontentamento com os marmanjos em casa se transmite em falas potentes como “Eles devoraram os meus dentes e toda a minha vida”. Nora se refere ao cálcio perdido na gravidez, mas também ao fato que, em quinze anos, nunca conseguiu efetuar o tratamento dentário sonhado, em virtude dos gastos dedicados aos filhos. Bela e simples metáfora encontrada pelo drama.

Assim, navega-se num território bem-vindo entre a apreensão bruta do real e os pequenos instantes de poesia que invadem o cotidiano. O texto constrói personagens tridimensionais, preocupados com o trabalho, a família, os amores, os desejos para o futuro. Cada figura é desenvolvida em profundidade, entre sequências típicas do cinema direto (Nora cuidando da mulher idosa, que assiste ao programa favorito na televisão) e intromissões de carinho (os planos de detalhe das mãos que seguram o corpo da mulher, as cantorias em conjunto).

A propósito de músicas, a trilha sonora desempenha um papel interessante neste drama. Teria sido fácil incluir melodias lacrimosas em instantes de maior sensibilidade, no entanto, a diretora opta por uma função mais complexa da banda sonora. A música se transforma em personagem, ao invés de mero acompanhamento da imagem. Personagens começam a cantar sozinhos ou para os colegas, e logo a orquestação extradiegética invade o momento para acompanhá-la. A passagem com uma faxineira negra cantando para os amigos na sala de descanso será sem dúvida uma das mais belas cenas exibidas nos cinemas brasileiros este ano.

Em paralelo, violências são mencionadas e sugeridas, mas jamais exibidas (a experiência das garotas com o sadomasoquismo, a agressão do possível pai da criança), enquanto o drama encontra espaço para ternura real dentro de uma prisão e no fim de um expediente exaustivo. Hafsia Herzi mostra-se uma grande diretora, trocando a vaidade autoral pelo cuidado com as personagens retratadas e com seus sentimentos. Sem revolucionar a estética nem subverter dinâmicas do drama clássico, apresenta uma maestria notável das virtudes do cinema independente.

A Boa Mãe (2021)
9
Nota 9/10

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