O Castelo (2023)

O fetiche da inadequação

título original (ano)
El Castillo (2023)
país
Argentina, França
linguagem
Drama, Documentário
duração
78 minutos
direção
Martin Benchimol
elenco
Justina Olivo, Alexia Olivo
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Um imenso castelo na Argentina. Há dezenas de quartos, seis banheiros, gramados a perder de vista. Na parte externa, cavalos passeiam livremente, junto a vacas, carneiros, porcos, cachorros, gatos. No entanto, a estrutura está caindo aos pedaços. Buracos gigantescos no teto permitem a entrada da chuva. As paredes se descascaram, a pintura saiu. Poucos cômodos seriam de fato habitáveis, de modo que mãe e filha — as duas únicas habitantes do imóvel — se abrigam na sala.

Trata-se de uma mulher indígena, pobre, e de uma jovem fascinada por automobilismo. Elas herdaram a propriedade, deixada pelos falecidos patrões, sob a condição de não venderem o imóvel. Por isso, seguindo as obrigações legais e morais, cumprem a promessa. Nota-se o prazer em manter, apesar das dificuldades, a aura imponente da casa atípica, que serve, entre outros, de local exótico de visita aos turistas da região.

A ficção decorre inteiramente desta improbabilidade: duas pessoas pobres ocupando um castelo; duas mulheres de origem indígena tomando banhos de sol num gramado luxuoso, enquanto abraçam carneirinhos. De fato, estas oportunidades são raras na sociedade argentina. O cineasta Martin Benchimol estima que mãe e filha reais mereçam ser retratadas desta maneira, enquanto rainhas de um palácio decadente, proprietárias de um luxo vazio. Estima que elas sejam interessantes por possuírem aquilo que não deveriam ter.

O Castelo debocha da ascensão social simbólica das protagonistas indígenas. Repete que vivem fora da norma e, portanto, seriam risíveis por não se colocarem em seu lugar.

O autor faz o possível para sublinhar este caso de exceção, ao limite da paródia. A trilha sonora, em especial, introduz melodias e arranjos típicos dos contos de fada da Disney, com uma orquestração sugerindo um “mundo de sonhos” que obviamente não corresponde à rotina de ambas. No entanto, a cada novo dia ou pôr do sol, lá vêm as cordas sonhadoras e a percussão retumbante, lembrando-nos da grandiosidade exagerada do imóvel habitado por duas pessoas. 

A música sugere que a presença da família neste local seria ridícula, indevida. Neste aspecto, surge o principal problema de O Castelo: o deboche pela ascensão social simbólica das protagonistas indígenas. Seria natural que o autor se movesse por uma curiosidade, investigando as origens precisas desta transição imobiliária, assim como a degradação progressiva do espaço, devido à incapacidade de manter uma estrutura dessas proporções. Grey Gardens (1975), dos irmãos Maysles, havia feito algo parecido, sem julgar nem debochar de suas personagens.

Ora, o diretor argentino se diverte em compor imagens onde os animais invadem a sala, ou quando a mãe solitária liga pela enésima vez ao marido distante, pedindo que venha acompanhá-la. Esta senhora idosa não possui complexidade, passado, objetivos, forças, vontade, humor, visões de mundo. Ela representa um corpo errado, uma subjetividade atípica, sublinhada cena após cena enquanto aberração. A filha possui o sonho das competições de carro, nada mais. Elas não interessam de fato à trama, para além do grupo social ao qual pertencem.

Por isso, o roteiro demonstra imensa dificuldade em progredir. Para representar um cotidiano monótono, Benchimol apela para um ritmo igualmente moroso, de cores lavadas, privilegiando os olhares perdidos e os silêncios a qualquer forma de ação. As cenas se equivalem, se repetem (o carinho com os bichos, a insistência dos conhecidos pela venda da casa), enquanto mãe e filha rejeitam estoicamente o desprezo dos demais personagens (e aquele do próprio filme). Não há uma única sequência mais forte, uma poesia potente para além da equiparação grotesca, efetuada pela montagem, do olhar da mãe ao olhar da vaca.

O longa-metragem estima oferecer ao público uma fábula de resistência política, espécie de Davi contra Golias do mundo contemporâneo. Conforme permanecem no castelo, as duas moradoras serviriam de exemplo pela coragem e capacidade de enfrentar a pressão da maioria. O cineasta provavelmente acredita estar prestando uma homenagem a estas mulheres, ao retratar seu cotidiano incomum — sobretudo, em função de sua etnia e do papel que representam em uma Argentina que resiste aos ventos perigosos da extrema-direita.

No entanto, o olhar jamais esconde a condescendência e o paternalismo. A câmera evita se posicionar junto a estas mulheres, para compreender o ponto de vista delas. Prefere espiá-las à distância, no fim do corredor, segmentando-as no enquadramento atrás de batentes de portas e janelas. Elas serão captadas à distância, sobre o balcão da sala, ou dormindo com o cabritinho no colo. Ao invés da postura de cumplicidade, adota-se o olhar de julgamento.

Além disso, a narrativa preserva as cenas em que ambas possam parecer inconsequentes, irresponsáveis, desprovidas de senso estético. Os quadros cobrem rachaduras na parede, os animais invadem a casa e lambem as colheres sujas. Nota-se certo escárnio, mesmo repulsa, pela situação em que vivem. No final, serão resumidas ao exotismo da inadequação, um lembrete de que vivem fora da norma e, portanto, seriam risíveis por não se colocarem em seu lugar. Elas vencem a batalha imobiliária, mas perdem a guerra da imagem decadente produzida a respeito das duas.

O Castelo (2023)
2
Nota 2/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.