A Farsa impressiona, em primeiro lugar, pelo tamanho da produção. O filme soa como uma extravagância e provável dor de cabeça aos criadores. São muitas dezenas de cenários luxuosos, mansões, festas, feiras. Cenários suntuosos são construídos para cenas que, pelo menos na versão final, duram poucos segundos. Há deslocamentos aéreos, cenas subaquáticas, caminhadas por avenidas lotadas. Conta-se uma dúzia de personagens centrais, incluindo alguns dos nomes mais prestigiosos do cinema francês contemporâneo: Isabelle Adjani, Pierre Niney, François Cluzet, Marine Vacth, Emmanielle Devos, Charles Berling, etc.
Pode-se falar num projeto inchado em tamanho, proporções, elementos, objetos. Salta-se em paralelo entre diversos personagens em simultâneo, do presente ao passado, da versão sugerida pelo réu àquela, radicalmente oposta, de uma testemunha. O diretor Nicolas Bedos possui em mão um orçamento faraônico e aumenta suas ambições, já tradicionalmente grandes, nesta mistura igualmente ousada de gêneros, incluindo o romance, a comédia, o suspense, o drama, o filme policial e a trama de tribunais.
Busca-se aquilo que os filmes americanos endinheirados chamam de “filme total”: uma produção capaz de agradar críticos e espectadores, homens e mulheres, jovens e adultos, conservadores e progressistas. Para cada bela mulher nua, nota-se um discurso contra a objetificação da mulher. Para cada conversa convencional, em plano e contraplano, a montagem introduz a dança poética e livre de um personagem sobre a areia da praia. Depois de uma sequência romântica, a trama se acelera em reviravoltas, e depois, torna a se aquietar rumo a um estilo contemplativo. Existem três ou quatro narrativas aglutinadas numa obra só.
Este caráter agregador, esforçando-se para agradar ao público de maneira tão explícita, parece ter sido uma das principais razões pela qual os críticos franceses torceram o nariz violentamente contra a obra. Mesmo o público a acolheu com frieza (tendo feito pouco mais de 800 mil espectadores em seu país). Para os adeptos do cinema de autor, as concessões em busca de um consenso majoritário soam imperdoáveis — de fato, o diretor Nicolas Bedos imprime poucas composições de linguagem autorais, em busca de um estilo próprio, uma estética pessoal. Trata-se de um mecanismo incrivelmente polido, refinado, profissional, mas que evita chamar atenção ao criador por trás das câmeras.
O diretor se diverte ao associar a arte à ficção, à mentira. Os personagens são dançarinos, atores, e discutem literatura, negociam quadros. Este caráter artístico se aproxima da criatividade, da impulsividade, e também da propensão ao crime.
No entanto, apesar de tamanhas ressalvas, impressiona o domínio do cineasta no interior deste blockbuster. Longe de criticá-lo por suas ambições, seria mais interessante reconhecer a capacidade de atingi-las, em sua vasta maioria. Nesta trama sobre falsários, golpes passionais, tentativas de assassinato e laços de conveniência, Bedos consegue articular todos os seus elementos com bom ritmo, prestando atenção suficiente a cada personagem, garantindo que as idas e vindas no tempo esclareçam as circunstâncias, ao invés de confundi-las. O quebra-cabeças soa intricado, porém realizado com sucesso.
O ponto de vista pertence, inicialmente, a Adrien (Pierre Niney) e a Margot (Marine Vacth). Ele sai com mulheres mais velhas pelo dinheiro; e ela, aplica seus golpes de maneira eficaz em múltiplos homens. Através da ciranda de pessoas envolvidas, conhecemos o empresário com quem ela se relaciona (François Cluzet), a atriz decadente com quem o ex-dançarino namora (Isabelle Adjani), a esposa do empresário (Emmanuelle Devos) e assim por diante. Os golpes jamais constituem uma finalidade em si próprios, nem se esgotam na vítima imediata dos atos. Pelo contrário, o roteiro busca analisar de que maneira essas brincadeiras afetam os filhos, maridos, colegas de trabalho, amigos, etc. Analisa-se uma teia de relacionamentos corroídos pelos interesses financeiros, disfarçados de romance.
O diretor se diverte ao associar a arte à ficção, à mentira. Os personagens são dançarinos, atores, e discutem literatura, negociam quadros, cantam em recitais com os amigos, enquanto assistem a filmes em casa. Este caráter artístico se aproxima da criatividade, da impulsividade, e também da propensão ao crime, enquanto os sujeitos mais passivos e desprovidos de originalidade serão os burocratas e empresários. Reveste-se a performance de um aspecto erótico e perigoso, onde as femmes fatales demonstram maior desenvoltura na sedução do que os homens.
Para o espectador, o prazer se encontra na ciranda vertiginosa de personagens que interpretam personagens. Margot, a mãe de uma garotinha pequena, vivendo num apartamento pequeno, finge ser uma mulher livre e cheia de dinheiro, que por sua vez adquire os traços de uma inglesa bilionária, e assim por diante. A diva Martha (Isabelle Adjani) esconde a tristeza em grandes gestos histriônicos (uma clara alusão a Crepúsculo dos Deuses), enquanto Adrien será o amigo tímido, o jovem conquistador, o namorado ciumento e a vítima de suas próprias maquinações, sucessivamente.
Não por acaso, a cena inicial traz duas pessoas colocando perucas e bigodes falsos. Estamos no domínio do acessório, do faz de conta. Por que ser real e entediante (caso da dupla Simon e Carole) quando você pode ser outro, ser quem você quiser? Os atores exploram muito bem essa dualidade entre a vida de consumo e diversão e o vazio de quem realmente são, uma vez que se deitam na cama à noite. É interessante que, por trás de tantos cenários, tanto brilho e luxo, exista um caráter melancólico, reflexivo. As cenas de tribunal, que forçam a narrativa inteira a se converter num longo flashback, servem para que ambos os advogados apresentem suas versões exageradas, parciais. A verdade certamente não pertence a nenhum dos dois.
Assim, A Farsa interessa menos pelo desfecho dado aos personagens (quem vencerá, quem será punido?) do que pelo turbilhão de golpes e contragolpes, de ataques e defesas. O aspecto de jogo de cena, com grandes atores se provocando, se seduzindo e repelindo, fornece uma espécie de tango entre trambiqueiros, no qual jamais se torce por alguém em particular, apenas pelo prolongamento do dispositivo labiríntico. O poder se torna o verdadeiro protagonista, ao invés de uma ou outra figura. Ninguém será totalmente inocente, nem culpado, não havendo, portanto, vítimas piedosas, nem criminosos perversos.
Estes artistas sonhadores, egocêntricos e criativos têm suas ações voltadas contra si e, embora as intenções não se concretizem no final, terão aproveitado dias empolgantes e noites turbulentas. Aqui, o caminho interessa mais do que o ponto de chegada, e o delírio, mais do que o retorno à realidade. Bedos, diretor acostumado ao retrato de desejos frustrados (vide Belle Epoque, 2019, e Monsieur e Madame Adelman, 2017), explora mais uma vez os sonhos enquanto motor de vida e também motivo de ruína de seus protagonistas. O encerramento sem uma moral definida, apesar das reviravoltas surpreendentes, deixa ao espectador a possibilidade de tirar suas próprias conclusões. No final, valeu a pena terem feito tudo o que fizeram?