A Fratura (2021)

A política do grito

título original (ano)
La Fracture (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
98 minutos
direção
Catherine Corsini
elenco
Valeria Bruni Tedeschi, Marina Foïs, Pio Marmaï, Aïssatou Diallo Sagna, Jean-Louis Coulloc’h, Camille Sansterre, Marin Laurens, Caroline Estremo, Ramzi Choukair, Ferdinand Perez, Clément Cholet
visto em
Cinemas

Há diversas maneiras de filmar o caos — que seja uma guerra, um protesto nas ruas ou um arrastão, por exemplo. Alguns diretores situariam a imagem à distância, de modo que o espectador pudesse observar a interação com o distanciamento de quem não participa da mesma. Assim, poderia estabelecer um estranhamento reflexivo, analisando os acontecimentos sem ser impregnado pelos sentimentos (ódio, medo, etc.) decorrentes de um acontecimento do gênero. É possível observar o fogo pela perspectiva da frieza, como foi o caso de Frederick Wiseman em Juvenile Court (1973).

Outros cineastas prefeririam escolher um ponto de vista único. Este poderia ser o olhar de um manifestante em particular, de alguém pego por acaso na multidão, ou dos policiais tentando conter a fúria nas ruas. Nestes casos, o espectador é convidado a se identificar com esta pessoa, e testemunhar os atos pelo filtro de uma subjetividade específica — o indivíduo em questão pode ser favorável aos acontecimentos, ou então contrário, indiferente, até em dúvida quanto ao posicionamento político. Karim Aïnouz opta por este tipo de estrutura em Nardjès A. (2020), escolhendo seguir o percurso de uma jovem manifestante.

Ora, A Fratura (2021) escolhe um caminho diferente. Nada de distanciamento, nem de olhar seletivo. Diante do auge dos protestos dos coletes amarelos na França, quando hospitais entraram em colapso, a câmera deseja estar em todos os lugares ao mesmo tempo. A diretora Catherine Corsini procura se posicionar junto à médica de plantão Kim (Aïssatou Diallo Sagna), à mulher desequilibrada emocionalmente, que quebra o braço num acidente desconectado com os protestos (Valeria Bruni-Tedeschi), à esposa dela, desgastada pela proximidade do divórcio (Marina Foïs), a um caminhoneiro que participava do levante (Pio Marmaï), e muitos outros. A câmera se posiciona dentro e fora do hospital, na recepção e na sala de cirurgia, de dia e de noite.

O desejo de onisciência e onipresença provoca efeitos fortes no drama. Em sucintos 98 minutos, a cineasta elabora uma obra acelerada e angustiante, onde há novos fatos e reviravoltas a cada poucos minutos. Adota-se uma estratégia de mergulho no olho do furacão: a narrativa oferece a perspectiva das manifestações “como se você estivesse lá”, sendo um manifestante suplementar, ou um enfermeiro a mais. O dispositivo se posiciona à altura dos olhos das dezenas de personagens centrais, perambulando pelos corredores, e movendo-se atentivamente para captar os novos feridos que chegam. 

É difícil encontrar respiro ou espaço para reflexão diante desta montanha-russa emocional. A direção opta por um retrato imediato e urgente, esforçando-se para tornar a experiência ainda mais asfixiante ao espectador. Há planos próximos de membros decepados; mulheres grávidas caindo sobre braços fraturados; uma mulher histérica desabando três vezes de sua maca; pacientes psicóticos tomando médicos como reféns; o teto do hospital desabando e gás lacrimogêneo entrando na maternidade. Tudo o que puder dar errado, dará, porque Corsini escolhe a exemplaridade dos casos mais extremos, e portanto, flagrantes, da crise política. 

A experiência pode soar exaustiva, ainda que Corsini, felizmente, saiba como controlar este dispositivo.

A sutileza passa longe deste coquetel de gritos, tapas e choros. Os personagens passam a quase integralidade das cenas brigando uns com os outros, se provocando, urrando de dor e berrando o nome alheio nos corredores lotados do hospital. É comum equilibrar a mise en scène pela alternância de cenas de catarse com outras de descanso, ou então posicionando personagens extrovertidos face a outros, mais tímidos. Aqui, em contrapartida, Raphaëlle (Valeria Bruni-Tedeschi) e Yann (Pio Marmaï) são ambos ferozes, beirando o surto psicótico. Marian Foïs atenua um pouco o tom geral com uma composição cansada e cínica — o que não deixa de conter bastante agressividade.

A experiência pode soar exaustiva, ainda que Corsini, felizmente, saiba como controlar este dispositivo. Trata-se de um cinema psicossomático, onde todos os sentimentos precisam ser exteriorizados, passando pelo corpo e se convertendo em sintomas imediatos e espetaculares. Ela consegue equilibrar as atenções entre uma dúzia de personagens, inserindo alguns planos de detalhe importantes (as mãos da enfermeira acariciando uma paciente) durante a gritaria à direita e à esquerda.

Enquanto isso, os aspectos de linguagem estão calibrados de maneira coesa, sem chamar atenção excessiva a si próprios. A montagem não acelera as cenas artificialmente, ou seja, visto que o movimento domina as ações, não é necessário picotar a edição para provocar dinamismo. A diretora de fotografia Jeanne Lapoirie, acostumada às narrativas corais de desordem (120 Batimentos por Minuto, 2017; Um Castelo na Itália, 2013), explora a luz esbranquiçada do hospital para criar uma atmosfera inóspita, de cansaço, junto às cores queimadas. Ao invés de embelezar os corpos, aproveita a aparência bege-cinzenta de uma locação igualmente desagradável.

O elenco está à altura da proposta de extremos. Valeria Bruni-Tedeschi domina como ninguém as personagens passivo-agressivas e descontroladas, sendo a principal responsável pelas tiradas tragicômicas que introduzem leveza ao teor grave do drama. O único porém seria a aparência de repetição: ela já compôs personagens semelhantes pelo menos uma dezena de vezes, o que proporciona poucas novidades ao espectador. Marina Foïs serve de contraponto exato a esta última, enquanto Pio Marmaï imagina um caminhoneiro obcecado e acelerado ao limite do maníaco (surpreende que o personagem não esteja sob uso de drogas estimulantes). Eles se prestam ao jogo com uma entrega sem moderações, o que convém às escolhas de Corsini.

Já o retrato dos coletes amarelos insiste em se colar ao real, incluindo vídeos do presidente Macron na televisão, e citando ruas e locais onde a revolta de fato aconteceu. A obra insiste em se tornar próxima dos eventos reais, ao invés de citar um movimento político amplo e, portanto, passível de identificação em outras partes do mundo. Existe uma vontade flagrante de se colar ao aqui e agora, efetuando o recorte de uma França específica, nestes anos determinados. Se alguns diretores miram em obras universais, outros preferem que seus trabalhos soem como fotografias de um tempo preciso.

Isto resulta na dupla ambição de A Fratura: por um lado, o hiperrealismo, investindo nos confrontos com a polícia e nos atendimentos médicos nos moldes do jornalista investigativo com sua câmera intrusa após uma catástrofe. Por outro lado, a ficção exemplar, na qual se inserem apenas os personagens diretamente afetados pelas manifestações, de corpos quebrados e doloridos. Eles emitem opiniões contrárias: uma mulher avessa aos protestos face a um favorável aos coletes amarelos; a esposa tolerante à marcha contra aquela que não o suporta. 

O filme procura representar a França inteira no interior deste hospital, onde burgueses convivem com proletários, e policiais reacionários se confrontam a médicos progressistas. O resultado carece de respiro, de pausa, de contemplação, demonstrando um medo infundado do silêncio. Assim, sobrecarrega o público de estímulos, impedindo a devida absorção dos mesmos ao longo da experiência — a eventual reflexão virá depois, por conta do próprio espectador, caso seja capaz de efetuá-la sozinho. 

No entanto, em sua abrangência, demonstra uma ambição política e social notável, frisando com clareza o posicionamento pró-manifestantes enquanto incorpora as devidas críticas aos excessos do movimento, e ao aparelhamento deste furor pela extrema-direita populista. Na vontade de abraçar tantos lugares e pessoas, deixa escapar elementos que jamais caberiam num abraço só. Em contrapartida, nunca esconde a vocação excessiva por trás de uma aparência de neutralidade: este é um filme tão passional e exaltado quanto seus personagens, e demonstra orgulho disso.

A Fratura (2021)
6
Nota 6/10

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