O aspecto que mais chama a atenção em A Jangada de Welles é sua montagem. É sempre um prazer se deparar com documentários inventivos na maneira de agenciar imagem e som, material de arquivo e captações contemporâneas. A sequência de abertura articula de maneira veloz e sofisticada a narração, a voz de Orson Welles, e imagens do cinema e da natureza. Petrus Cariry e Firmino Holanda colam registros que jamais foram concebidos para conviver, o que resulta numa experiência inesperada para o espectador.
Logo, somos convidados a prestar atenção constante no que ocorre diante de nossos olhos. Os documentários didáticos gostam de pegar o espectador pela mão, conduzindo-o através de uma explicação linear, clara, desprovida de ambiguidades. Aqui, em contrapartida, há metáforas e sugestões em cada cena. O filme aposta num caminho labiríntico de estímulos, no qual existe um verdadeiro prazer em se perder.
O tema contribui para esta abordagem. Afinal, trata-se do encontro entre dois mundos que se supõe opostos: por um lado, há as grandes produções de Hollywood comandadas por um diretor renomado como Orson Welles. Por outro lado, a vida simples dos pescadores da praia de Mucuripe, no Ceará, onde o cineasta decide filmar É Tudo Verdade, projeto nunca concluído. A narrativa parte desta curiosidade, focando-se num fato excepcional, e na maneira como afetou tanto a vida glamourosa do americano quanto a rotina dos brasileiros.
Holanda e Cariry analisam o tópico em profundidade. Eles avaliam a política de cada país durante a Segunda Guerra Mundial, o interesse de Brasil e Estados Unidos nesta produção cinematográfica, o posicionamento de ambos diante do nazismo crescente. Sequências particularmente criativas decorrem da associação entre o Terceiro Reich e a representação do mal em títulos do expressionismo alemão, como Nosferatu (1922) e O Gabinete do Dr. Caligari (1920). O cinema alemão da época que se encarregue de ilustrar o pensamento reinante naquela nação.
O vigor na montagem e na finalização se encontra com um trabalho menos rigoroso de captação de imagens contemporâneas.
No entanto, o vigor na montagem e na finalização se encontra com um trabalho menos rigoroso de captação de imagens contemporâneas. As entrevistas são marcadas por uma textura digital de baixa qualidade. Os homens idosos transpiram sob a luz dos refletores, espelhados em seus óculos e cabeças. A montagem com fotografias e sons é tão primorosa que apenas ressalta o abismo existente entre as entrevistas e os registros de décadas atrás que, supostamente, teriam qualidade mais baixa. Estes recursos aparentam existir em filmes diferentes.
Outro ponto de incômodo surge da amplitude do discurso. É louvável que os autores procurem traçar uma relação entre os acontecimentos dos anos 1940 e a desigualdade social atual, no entanto a aproximação soa apressada, pouco orgânica. A sequência a respeito da desapropriação de habitantes de Vicente Pinzón possui muita potência em si, porém soa desconectada do restante da narrativa. O mesmo pode ser dito a respeito das passagens sobre a especulação imobiliária, incluindo tomadas de arranha-céus à beira-mar.
A alternância de foco, de Orson Welles para o jangadeiro Jacaré, constitui um bom elo entre contextos tão diferentes. O filme cresce quando passa o bastão do cineasta de Cidadão Kane (1941) ao ícone brasileiro dos pescadores cearenses. Em contrapartida, a narrativa corre o risco de idolatrar o autor estrangeiro, valorizando os cenários e habitantes cearenses pelo simples fato de terem sido escolhidos pelos norte-americanos. A assinatura de Welles numa cartela final, e frases como “Dois dos maiores cineastas do século XX não tiveram sorte no nosso continente”, em referência a Eisenstein, resvalam no perigo de solicitar a validação estrangeira de nossas qualidades.
A narração em off possui um caráter ambíguo: quando utiliza a voz de Orson Welles, sobreposta a cenas brasileiras, produz um efeito reflexivo, fantasmático, apropriado à reflexão distanciada. No entanto, a narração brasileira soa como ferramenta para suprir as lacunas que a imagem se vê incapaz de representar por si própria — caso do trecho relacionado ao curta-metragem A Jangada Voltou Só.
Assim, o resultado se mostra ambíguo. De certa forma, representa o melhor que o cinema documentário pode oferecer em termos de ambição política e social, além de romper com o aspecto solene dos filmes jornalísticos. Holanda e Cariry imprimem uma estética própria, autoral, a partir de imagens bem pesquisadas e orquestradas. É evidente que nenhum dos dois se contenta com a mera exposição dos fatos, e se recusa a permanecer refém da importância do tema. A forma jamais se rende servilmente ao conteúdo.
Em contrapartida, o roteiro se perde na conexão de ideias, enquanto a direção de fotografia, sempre tão aprimorada nos longas-metragens ficcionais de Cariry, revela-se frágil neste caso. Seria possível manter todas as associações entre Expressionismo, era de ouro de Hollywood e desigualdade social no Brasil contemporâneo, contanto que novas pontes fossem traçadas e oferecidas enquanto elos entre os núcleos.
A exposição do episódio acerca da vinda de Orson Welles carrega qualidades e defeitos. Enquanto sustenta a importância dos jangadeiros cearenses e desconstrói estereótipos a respeito da cultura e das habilidades destes homens, rende-se de maneira romantizada à presença do estrangeiro em nossas terras. Resta ao espectador o prazer de descobrir um filme rico em ideias, o que o distingue de inúmeros documentários bem comportados que inundam o circuito comercial. Se for para apostar em escolhas às vezes questionáveis, que ocorram dentro de uma obra corajosa como esta.