Dogborn (2022)

Dois perdidos numa noite suja

título original (ano)
Dogborn (2022)
país
Suécia
gênero
Drama
duração
84 minutos
direção
Isabella Carbonell
elenco
Silvana Imam, Philip Oros, Mia Liu, Emma Lu
visto em
Festival de Veneza 2022

Uma preocupação surge de imediato diante das situações apresentadas em Dogborn. O drama ameaça se enveredar pela dinâmica do mundo cão, a partir de dois irmãos conhecidos como os Gêmeos, em situação de extrema vulnerabilidade social. Eles não têm empregos, familiares, nem uma rede de apoio, e sequer sabem onde dormirão, ou se terão o que comer. Cada ligação da Irmã (Silvana Imam) para solicitar abrigo ou ajuda é acompanhada de uma violenta resposta negativa. O mundo parece ter fechado as portas aos dois.

A sensação se acentua diante de um trabalho asfixiante de fotografia. A dupla é seguida de perto, em todas as cenas, ocupando a integralidade das imagens. Enquanto dirigem pela cidade, caminham pelos corredores ou buscam um endereço específico, a câmera se cola aos rostos sofridos, os cabelos bagunçados, os casacos desgastados que mal os protegem do frio intenso. A imagem oscila entre os rostos próximos, a nuca durante os deslocamentos, e os movimentos laterais nas sequências de caminhadas. 

Os conflitos e angústias são acentuados pela escolha da câmera-personagem, ou seja, a história que elege dois protagonistas e nunca os abandona. A Irmã precisa cuidar do Irmão (nenhum deles possui nome), um jovem adulto que não fala; além de pessoas que aparecem em seu caminho, e das demandas absurdas que partem dos pequenos patrões. Ela quer garantir que todos estejam seguros conforme se desloca entre um bico e outro. A premissa do cuidado ostensivo levanta um raciocínio irônico: quem cuidará dos cuidadores? Quem vigia a Irmã, enquanto esta visa assegurar a sobrevida dos demais?

As cores neon, o uso intenso de trilha sonora, os close-ups e a reprodução de urgência através do tempo real (a história se desenvolve em poucas horas) talvez sugiram que a cineasta Isabella Carbonell esteja se divertindo com o espetáculo da miséria. Ela poderia observar o sofrimento com letra maiúscula, apresentando prazer em vitimizar duas pessoas vulneráveis, estrangeiras e marginalizadas, para criar um discurso social. Muitos filmes se perdem no limite entre denunciar a violência do sistema e ser, por si próprio, violento em relação aos sujeitos que representa.

Dogborn evita repetir as falhas recorrentes do cinema-tortura, tantas vezes praticado por jovens cineastas homens em sua ânsia de denunciar os males do mundo a partir de uma posição de superioridade moral e social.

Felizmente, as inquietações começam a se dissipar. Irmã, Irmão e outros indivíduos explorados nesta trama jamais assumem uma posição chorosa, nem se apiedam sobre seus destinos. Eles tampouco se convertem em heróis de uma resistência quixotesca. O roteiro permite que respondam da melhor maneira a cada obstáculo isolado, errando às vezes, consertando-se em seguida, hesitando quanto ao melhor caminho a adotar. Trata-se de figuras plausíveis, isentas de idealização, e observadas com distanciamento. A autora evita solicitar ao espectador que torça por eles ou tema por seus destinos. Testemunhamos a madrugada violenta numa posição inesperadamente apartada.

Segundo, o longa-metragem foge da materialização dos temas espinhosos que discute. Dogborn retrata o tráfico de mulheres, a pedofilia, a prostituição, a exploração de estrangeiros por outros estrangeiros que precisam de dinheiro. A heroína sequer desconfiaria que a “mercadoria” a entregar em endereços precisos consiste em mulheres prostituídas, e algumas crianças a clientes seletos, para orgias. Nenhuma violência sexual é mostrada de perto, apenas sugerida via som ou símbolos de causa e consequência. É evidente que a atriz mirim foi protegida de tal contexto durante as filmagens.

O texto evita chamar os crimes pelo nome. Pelo misto de vergonha e pela evidente consciência do quão errado são estes atos, os negociadores falam em “fazer entregas”, “coletar o material”, “você sabe o que tem que fazer”, e assim por diante. A tensão se fortalece diante da tentativa de disfarçar o óbvio, ou conferir uma aparência aceitável a atitudes abomináveis. A Irmã aceita, inicialmente, fazer as entregas, pela necessidade do dinheiro, e depois traça seu próprio limite pessoal ao descobrir, na traseira da van, uma garotinha de menos de dez anos de idade. 

O curto tempo de narrativa poderia sugerir uma gradação implacável. Em contrapartida, o projeto surpreende pela abertura aos silêncios e à contemplação. A escolha por um co-protagonista mudo faz com que os medos e horrores da dupla sejam transmitidos apenas no rosto dos atores, impossibilitados de travar uma conversa. Aqui, os não-ditos se tornam tão fortes quanto aquilo que se verbaliza, e as sugestões assombram mais do que as imagens reveladas. O que dizer do som de meninas apavoradas na parte de trás do veículo, enquanto os Gêmeos dirigem?

Silvana Imam e Philip Oros compõem uma boa dupla, com estilos de atuação distintos, porém complementares. Ela, rapper e atriz, oferece uma composição crua, sem qualquer vaidade, preferindo o estilo intuitivo ao técnico. A intérprete assume uma posição da personagem-corpo, de uma entrega selvagem e avessa à psicologização. Ele, por sua vez, encarrega-se da doçura num mundo de brutos, sugerindo através do olhar uma possibilidade de ternura quase infantil, ou mesmo infantilóide. A dupla se converte, simbolicamente, em mãe e filho, até ele ganhar a oportunidade de se impor de maneira autônoma.

É verdade que alguns traços soam forçados e acelerados no processo. A reunião entre a menina pequena e o Irmão careceria de mais cuidado e elaboração para soar verossímil, enquanto a ameaça efetuada a um dos clientes adquire um caráter unilateral de controle de poder — como o sujeito riquíssimo não tentaria se valer de sua posição de privilégio? Carbonell acredita em suas escolhas extremas e jamais alivia o teor das ações, correndo o risco de soar caricatural em determinados momentos. Há um grau de segurança e autoconfiança exemplares neste gesto sem concessões.

Por fim, Dogborn evita repetir as falhas recorrentes do cinema-tortura, tantas vezes praticado por jovens cineastas homens em sua ânsia de denunciar os males do mundo a partir de uma posição de superioridade moral e social. A diretora sueca posiciona-se ao lado dos protagonistas, em postura de inesperada cumplicidade e horizontalidade. Neste processo, minimiza uma compreensão política ampla (faltam religião, leis, polícia e outros agentes no jogo) em prol de um retrato específico de dois indivíduos sem nome nem pertencimento, porém seguros de seu direito de resistência aos absurdos que os cercam.

Dogborn (2022)
7
Nota 7/10

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