Uma das primeiras qualidades desta animação reside no caráter fabular assumido. Não se trata de uma jornada lúdica que, por acaso, possui elementos dignos da fábula, a exemplo de tantos filmes “familiares”. Uma moldura orna a imagem inicial, tal qual uma pintura, e a câmera literalmente adentra o “desenho” para mergulhar na história. Existe um narrador que conduz a trama e sua interpretação, além do penoso questionamento moral e de uma lição ao final da história.
Por trás da aparência de uma ludicidade infantil, no entanto, reside uma aventura sombria pelas entranhas do Holocausto. Inicialmente, A Mais Preciosa das Cargas parece se concentrar no milagre de um bebê oferecido de presente, pelo destino, a uma mulher incapaz de ter filhos. A pobre lenhadora (voz de Dominique Blanc) e o pobre lenhador (voz de Grégory Gadebois) vivem em situação de miséria e, mesmo assim, acolhem o recém-nascido atirado de um trem. Ela agradece ao “deus do trem”, compreendendo que o menino significa uma tarefa e uma dádiva. Desprezá-lo seria como desprezar a Deus.
Aos poucos, a magia se descortina, e se faz menos maravilhosa. Em outras palavras, o real atropela os sonhos, eliminando dádivas, sonhos e virtudes. O trem doador de bebês corresponde ao veículo que conduz judeus aos campos de concentração. O marido, inicialmente, rejeita a criança “de outra natureza”, “sem coração”, diferente de nós. Apesar do antissemitismo fortemente arraigado, acaba por se encantar com o pequeno. Os colegas de trabalho farejam a presença de uma criança “diferente” na região. A morte se anuncia na casa dos lenhadores, e também no horizonte, ali nas fornalhas dos campos.
Uma leitura concisa e bela em sua natureza humana, evitando os maniqueísmos e os aprendizados óbvios a respeito do absurdo da guerra.
Os traços diminutos dos desenhos servem a propósitos específicos. Eles transmitem uma impressão de pureza e inocência, como se a simplificação voluntárias de detalhes apontasse para homens e mulheres arquetípicos. Favorece também o distanciamento: tiros, cadáveres e figuras desfiguradas soam menos impactantes no desenho multicolorido do que seriam na linguagem fotorrealista. O recurso permite ao diretor Michel Hazanavicius representar os horrores da Segunda Guerra Mundial sem reproduzi-los de maneira traumática e referencial — algo que constitui a principal crítica aos filmes de Spielberg e Benigni, por exemplo.
Além disso, a escapatória ao real por meio da animação possibilita aos criadores irem ainda mais longe na caracterização das dores, quando o desejam. Um filme em live action poderia apresentar atores chorando, sofrendo, empilhando-se desfalecidos nas valas comuns. Ora, o longa-metragem francês oferece uma sucessão perturbadora de rostos brancos, com as bocas bem abertas, gritando sem som, sob um fundo preto infinito. Poucos filmes de horror, ou dramas de guerra, atingem um teor tão sinistro quanto a ilustração desenhada dos corpos indistintos, berrando para ouvido nenhum. Trata-se de uma maneira dura, mas também original e marcante, de aludir aos crimes cometidos pelos alemães.
Os judeus nunca serão chamados de judeus, e os nazistas jamais são denominados nazistas. O filme possui a inteligência de estimar que as imagens podem explicar de modo suficientemente claro as motivações e atitudes destas pessoas. Os termos se tornaram excessivamente conotados, disputados em tempo de narrativas de fake news comandadas pela extrema-direita. Assim, ao invés de chamá-los pelo que são, mostremo-nos pela maneira como se portam. Transformemos o trem num deus trem, o bebê numa dádiva dos céus, e os pobres lenhador e lenhadora num casal agraciado pela magia da maternidade. Acrescentamos uma aura de conto de Natal à história menos festiva possível.
Para além das mortes e do sofrimento, A Mais Preciosa das Cargas pode incomodar pela dificuldade de determinar um protagonista. O ponto de vista alterna diversas vezes na curta experiência de 81 minutos. Inicialmente, podemos acreditar que a mãe seria a personagem principal. Adiante, ela é escanteada, cedendo espaço ao marido intolerante. O esposo, por sua vez, é substituído pelo homem desfigurado e, por último, pelo sobrevivente dos campos de concentração. Não enxergamos o mundo pelos olhos de nenhum adulto em particular, tampouco do bebê conforme cresce. Estamos a certa distância de todos, algo que atenua o aspecto possivelmente lacrimoso da trama.
Entretanto, o drama se encerra muito bem, tanto na conclusão proverbial, quanto nos símbolos encontrados como forma de reparação — vide a vítima dos campos tomando um trem, décadas mais tarde; além do irônico narrador discorrendo a respeito da natureza do amor. Trata-se de uma leitura concisa e bela em sua natureza humana, evitando os maniqueísmos e os aprendizados óbvios a respeito do absurdo da guerra. Não é necessário fornecer a ninguém cartilhas de moral e bons costumes, razão pela qual o desfecho se prova mais filosófico e existencialista, do que propriamente pedagógico.
PS: Um fator incomoda bastante na experiência brasileira da obra: as liberdades tomadas pela legenda em relação à língua original. Nenhuma legenda deveria reinterpretar, “melhorar” ou modificar o sentido das palavras originais, apenas trazê-las o mais próximas possível da língua local. Ora, em francês, os personagens são descritos como “pobre lenhador” e “pobre lenhadora”. O livro de Jean-Claude Grumberg, traduzido por Rosa Freire d’Aguiar, utiliza a mesma terminologia.
Trata-se de algo fundamental à trama: ambos trabalham, sendo definidos por seu ofício, de maneira horizontal, dispensando hierarquia entre eles. Inclusive, o fato de a mulher cortar parte da lenha sozinha serve para obter o leite que garante a sobrevivência do bebê. No entanto, por algum motivo obscuro, a legenda brasileira prefere chamá-la de “esposa do lenhador”. Por que retirá-la da condição de trabalhadora, para limitá-la ao status matrimonial? Trata-se de uma escolha machista e equivocada, para dizer o mínimo — mesmo sabendo que a versão brasileira também foi elaborada por uma mulher.
Os problemas continuam. O título brasileiro optou por “a mais preciosa das cargas”, um nome bastante apropriado ao original “la plus précieuse des manchandises”. Em alguns momentos, “marchandise” é traduzido como “pequena carga… viva”. Por que o “viva” ali, se a poesia consistia justamente em compará-la a uma carga qualquer? “Parece que esta história é um conto”, explica o narrador na conclusão. “Dizem que esta história é inventada”, preferiu a versão brasileira, algo que transforma sensivelmente o sentido das palavras. Esta tradução prejudica demais a compreensão das palavras muito bem escolhidas da língua original.