O Policial e a Pastora (2023)

Conversas sobre um filme possível

título original (ano)
O Policial e a Pastora (2023)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
direção
Alice Riff
com
Alexandre Felix Campos, Valeria Cristina Vilhena
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Este documentário parte de uma questão fascinante: como se comportam as raras pessoas progressistas no interior de núcleos tradicionalmente conservadores? De que maneira um policial sustenta seu posicionamento antibolsonarista junto a uma corporação que abraça em peso o ex-presidente? Que obstáculos enfrenta uma mulher evangélica que acredita na igualdade entre os gêneros? A pergunta possui relevância fundamental em tempos de dificuldade de escuta de opiniões alheias, quando se estimam existir apenas dois polos políticos opostos e excludentes. A diretora Alice Riff parte da proposta de repensar o conceito de polarização.

Para tal, elege os dois personagens listados no título, e decide visitá-los. Pede ao policial Alexandre Felix Campos que detalhe sua expulsão da corporação, mas também a ojeriza por uma esquerda utópica. Solicita a Valéria Cristina Vilhena que explique as origens de sua fé, em paralelo à crença de que mulheres não devam ser submissas ao marido. Até aí, a premissa se justifica, assim como a abordagem humanista. A intenção de estabelecer conversas de igual para igual, no sofá das casas ou à mesa do jantar, desconstrói a gravidade do tabu e familiariza o debate de ideias.

No entanto, os primeiros problemas surgem da condução destes encontros. A cineasta se coloca em cena tanto quanto os personagens. Ela revela a equipe, o microfone, os móveis deslocados para ajustar o cenário. Mostra suas perguntas, e justifica ao espectador porque filma o que filma, esclarecendo quais dúvidas teve antes de fazê-lo. É impressionante a ascensão no cinema brasileiro deste documentário-selfie, onde mesmo na hora de abordar pessoas distintas, os criadores ainda estimam ser fundamental inserir sua voz, seu corpo, suas intenções, como se a simples feitura do filme não bastasse para representar o que parecia importante ou não à diretora. 

O dispositivo se mostra bastante limitado. Precisamos acreditar na boa-fé dos criadores e personagens, posto que nenhuma imagem corrobora as falas.

No Olhar de Cinema, outro título, Neirud, sofria de mal semelhante. Em tempos de redes sociais, talvez apenas a imagem de si próprio carregue valor aos olhos alheios. Além disso, paira a necessidade de se justificar, se explicar, evitar mal-entendidos políticos acerca de seu posicionamento e lugar de fala. Por isso, a transformação de diretores em protagonistas dos documentários sobre outras pessoas carrega esta (falsa) impressão de humildade, sinceridade, como se os autores dissessem: “Está vendo como não minto para você? Foi realmente isso que aconteceu. Eis o que eu perguntei, e eis o que ele me respondeu”. Ora, as escolhas de enquadramento, de roteiro, de montagem, já expressam um ponto de vista. A decisão estética constitui um posicionamento por si só, sem a necessidade de tamanha infantilização da produção de sentidos.

Junto aos personagens, Alice Riff se interessa menos à espontaneidade das trocas do que a uma curiosa proposta de teatralização dos dilemas. Ela solicita que leiam em voz alta seu diário, além das mensagens de texto e cartas enviadas à diretora previamente à filmagem. Novamente, o cinema-making-of é privilegiado em relação às interações que ela possa obter ao vivo, in loco. A cineasta insiste em provar que as falas ocorreram de verdade, que as palavras partiram realmente dos protagonistas. Por isso, controla ao máximo o cenário, a conversa, o resultado das trocas, aproximando-se da ficção convencional. Alguém duvidava da veracidade do dispositivo a ponto de justificar tamanha defesa e autoproteção? 

Os próprios Alexandre e Valéria sugerem à autora novos rumos ao projeto. Pedem que ela saia às ruas, encontre outras mulheres evangélicas, ou pesquise nos arquivos públicos para descobrir as infrações de que o policial é acusado. Eles compreendem a necessidade de expandir seus questionamentos ao resto da sociedade — afinal, este não seria um filme sobre dois indivíduos específicos, mas sobre a possibilidade de divergência ideológica num país traumatizado. Entretanto, a cineasta não os escuta. Permanece na casa dele, filma quando a pastora pede para não fazê-lo, e sai apenas quando Valéria insiste que o faça. Não busca nada que não seja solicitado pelos personagens. Não efetua pesquisas próprias, evitando introduzir material de arquivo, metáforas, simbologias. Prefere se sentar no quarto de um, ou à mesa com outra, e admirá-los ler.

O dispositivo se mostra bastante limitado. Precisamos acreditar na boa-fé dos criadores e personagens, posto que nenhuma imagem corrobora as falas. Em outras palavras, o policial poderia ser interpretado por um ator, já que nada nos atesta sua profissão. Materiais de arquivo, conversas com outros membros da corporação, objetos ou outros elementos poderiam ser utilizados na descrição deste policial. Em paralelo, seus encontros com membros de partido de esquerda permitiriam enxergar as divergências políticas mencionadas. No caso da pastora, o filme estranhamente escolhe filmar uma pregação (excelente, por sinal) de Alexya Salvador, ao invés daquela de sua protagonista.

Em consequência, os personagens falam sobre ser policiais e pastores. O documentário discute ser de esquerda ou direita, cogita enfrentar estruturas e preconceitos, porém nunca representa em imagem estes confrontos, nem tenta ilustrá-los por vias metafóricas. Mesmo as trocas verbais resultam decepcionantes: Alexandre Felix Campos e Valéria Cristina Vilhena são duas pessoas eloquentes, de um raciocínio complexo e acessível. Ambos possuem profundo conhecimento de seus respectivos mundos. No entanto, ganham raras oportunidades de se expressar livremente, posto que o dispositivo prefere as encenações com textos lidos, brincadeiras com roteiros fictícios e a questionável mise en scène da morte de Alexandre (recurso este que jamais se desenvolve, nem produz consequências dramáticas determinantes ao resto do filme).

Logo, as imagens soam pouco importantes em O Policial e a Pastora. Por mais que se tenha decidido por uma captação crua e pouco intervencionista, surpreende o trabalho de direção de fotografia, com sua câmera tremida, indecisa quanto ao enquadramento, a profundidade de campo, os movimentos. As luzes naturais e os sons diretos no apartamento não são nada favoráveis. Apesar disso, a equipe se recusa a simplesmente buscar um espaço mais apropriado (onde os personagens se sintam igualmente confortáveis) para filmar.

A captação, impressa numa textura digital de baixa resolução, seria talvez apropriada aos registros urgentes e imprevistos (uma manifestação nas ruas, por exemplo). Ora, o fotógrafo Vinicius Berger tinha os personagens à sua disposição, podendo filmar como quisesse. Em contrapartida, opta por um registro der descaso pela luz, pelo enquadramento, pelas interações. Até um trabalho de correção de cor auxiliaria nas internas do apartamento de Alexandre. A decisão rígida de nunca abandonar este espaço produz a impressão de uma obra produzida no ápice da pandemia, da única maneira possível. Mas os criadores não se encontravam em tempos pandêmicos.

Um elemento poderia ser trabalhado de maneira positiva: as imposições de ambos os personagens a respeito da maneira como gostariam de ser retratados. Eles fazem exigências precisas e, em certa medida, poderiam ser considerados coautores. No entanto, o embate criativo logo perde forças, sendo descartado pela estrutura narrativa. A própria montagem merece questionamentos pela estrutura rígida adotada: soma-se uma apresentação dele a uma apresentação dela, e a sessão se encerra em míseros 65 minutos.

Ora, surgia a impressão de que, passadas as formalidades, a experiência enfim começaria, e se desenvolveria no terço final. Havia um mundo de fricções narrativas e políticas a propor — um encontro entre os dois personagens, uma visita a outros grupos e pessoas, etc. Faltava um desfecho, um desenvolvimento, capaz de inserir estas vivências num contexto social mais amplo. Riff, criadora de belos documentários, a exemplo de Meu Corpo É Político, apresenta uma obra tímida, pouco corajosa, em comparação com o vinha propondo até então. Esta iniciativa não se mostra disposta a apreender, registrar, representar, a se colocar em risco, a incorporar o furor dos temas abordados. As falas sugerem um filme que poderia, de fato, ser muito empolgante, e que parecia se iniciar assim que sobem os créditos. 

O Policial e a Pastora (2023)
4
Nota 4/10

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