Neirud (2023)

Autorretrato alheio

título original (ano)
Neirud (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
71 minutos
direção
Fernanda Faya
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Talvez esteja na hora de propor algum estranhamento ao cinema documentário de natureza autobiográfica, narrado em primeira pessoa. A produção brasileira se acostumou a uma enxurrada de obras, propostas por autores jovens, sobre seus pais, tios e avós. Criou-se um “cinema do quintal de casa”, um filme sobre minhas caixas de arquivo, minhas fitas VHS, minhas memórias de infância. Um cinema meu. Nestes casos, é comum que os criadores assumam a voz em off, expondo seus sentimentos e revelando-se nas imagens. Tornam-se personagens.

Ora, todo diretor exerce um controle determinante sobre suas obras pela simples natureza da criação. No caso específico do cinema independente, de baixo orçamento, documentário e de natureza pessoal, o domínio se torna ainda maior. Por que então, já em pleno domínio da forma, do discurso e da linguagem, estes artistas assumem igualmente a narração em off, com sua própria voz? Paira a impressão de um desejo profundo de comando e autoridade. Nada pode escapar a estes criadores; nenhum sentido pode ficar em aberto a reflexões, brechas a ambiguidades. Nestes casos, os autores expõem muito mais de si próprios, quando organizam sua arte a rédeas curtas, do que sobre seus objetos de estudo e temas de discussão.

A multiplicação deste segmento de filmes se justifica por inúmeros fatores. Um deles diz respeito ao baixo orçamento que viabiliza iniciativas em tempos de crise (afinal, os vídeos são criados literalmente dentro de casa). Em entrevista, Marcos Yoshi menciona em paralelo uma tendência contemporânea, aliada ao tempo de redes sociais, de valorizar a autoexposição. O “conteúdo” soa mais orgânico, real, caso o jovem autor se ofereça em voz e imagem. A autobiografia ainda produz uma sensação mista de humildade e sinceridade (pela fragilidade de se mostrar) combinada ao egocentrismo e ao histrionismo (pela vontade de ser visto, gostado). 

A voz off diz o que pensar, o que concluir, que lições tirar. Ao espectador, passivo diante da masterclass, resta assistir à exposição didática.

Em Neirud, a voz off da diretora Fernanda Faya controla tudo. Tudo mesmo. Ela surge na imagem inicial e nos acompanha insistentemente até a conclusão. A cineasta diz quem são as pessoas tratadas, de onde vêm, para onde vão. Explica como se sentem, o que querem. Apresenta fotos e detalha onde foram tiradas, tal qual uma legenda. Diz o que pensar, o que concluir, que lições tirar. Ao espectador, passivo diante da masterclass, resta assistir à exposição didática, controlada, mastigada. Não nos resta muito a refletir, a questionar, em virtude da falta de dubiedades e sugestões da imagem. 

Os sentidos se prendem a uma etapa superficial da imagem, enquanto a estética se restringe ao show and tell. A escolha pelo intervencionismo extremo na comunicação poderia se justificar pela carga considerável de descobertas da diretora em termos de dados, informações, materiais de arquivo. Para que o espectador não se perdesse, teria tomado a liberdade de organizar o vasto fluxo de informações. Ora, nada disso está perto de ocorrer em Neirud. A diretora parte da ausência de dados, fotos e vídeos da tia, que trabalhava como Mulher Gorila no circo. Ela pergunta ao pai, diversas vezes, o motivo de não possuírem registros desta mulher. O homem responde que não sabe, não lembra, não tem certeza. “Você ainda está fazendo esse filme?”, questiona com desdém.

Faya parte, portanto, de uma premissa de representação pela ausência. Obras fascinantes já foram criadas a respeito do apagamento de vivências, das graves lacunas da história. Neste caso, alude-se ao elemento ausente através de metáforas, fragmentos, sugestões. Em se tratando de uma mulher negra, lésbica, entregue aos pais para trabalhar como babá em “casa de família” na idade de 8 anos, haveria muito a dizer sobre as raízes discriminatórias deste Brasil “cordial”. Entretanto, o discurso se mostra tímido até demais na tentativa de compreender os componentes do racismo na criação da “mulher gorila”. Pelo contrário, fetichiza reiteradas vezes a força sobrenatural desta mulher capaz de derrotar homens no ringue. Nas cenas finais, em forma de amarga homenagem, a diretora revela a lembrança do pequeno tamanho de suas mãos, perto das mãos robustas de Neirud.

Para a nossa surpresa, conforme a narrativa avança, a montagem revela que havia, sim, material disponível a respeito da protagonista. Mas ele havia sido guardado, para se criar um inexplicável suspense em relação à descoberta. A narradora passa inúmeras cenas se lamentando pela da ausência de registros para mostrar que — veja só! — conseguiu um vídeo das lutas da artista circense, além de uma entrevista em áudio, bastante esclarecedora, comentando os rumos pessoais desta mulher. Por que tratar a investigação como se estivesse se desenvolvendo ao vivo, junto do espectador, posto que o resto da narrativa se desenrola no pretérito? 

Faya comenta uma extensa procura em museus e arquivos, porém nada disso se encontra em imagens. Restam as conversas com o pai, as especulações íntimas da diretora. Por que segurar, até o final, a óbvia revelação de que tinha em mãos o material que vinha procurando? A montagem se articula de maneira anticlimática, além de questionável eticamente. Caso revelasse desde o princípio o único vídeo das lutas de Neirud, faria um filme sobre ela. Em compensação, a autora prefere centrar o foco da obra sobre si mesma: suas lembranças, a falta dessa tia. Relega a mulher ao segundo plano, no projeto supostamente dedicado a ela.

Isso porque Neirud, personagem-título, interessa à cineasta somente a partir do momento em que possa devolver o holofote à diretora. Não se busca conhecer a vida autônoma da personagem falecida. Surpreende a ausência de imagens da criadora tentando falar com outras lutadoras, com amigas da vó, com vizinhos de bairro, com colegas da igreja. Em contrapartida, impera a visão da personagem em terceira pessoa, pelo filtro da memória afetiva. “Eu era fissurada nas mãos dela”, “Eu queria voltar no tempo”, “Eu tenho tido sonhos com a Neirud”, “Então a minha intuição de criança estava certa”. Às vezes, o texto se lança em lamúrias retóricas: “Se ela era da família, por que ninguém guardava nada dela?”, “Neirud, o que foi que aconteceu depois que você fugiu pro circo?”.

Terminamos a obra conhecendo pouquíssimo a respeito da mulher, mas muito sobre a vontade de Faya em realizar um filme, em falar de si, de sua “família branca, nuclear, com casa própria”, apesar das origens ciganas. Percebemos sua decisão de viajar com o irmão, a compra do carro parecido com aquele de Neirud, a câmera recebida de presente na infância, a vontade de ir ao circo quanto pequena. A diretora abre e encerra a obra, que parte do clássico “Quando eu nasci” até chegar numa reencenação com a cineasta em cena, dirigindo com suas bolas coloridas presas ao teto do carro, em textura envelhecida para mimetizar a lembrança da atividade profissional exercida por Neirud no fim da vida. 

O documentário ainda estabelece conexões apressadas entre a luta livre de mulheres e feminicídio no Brasil atual, ou entre atividade circense e ditadura militar. “A repressão e a censura cresciam, mas o espetáculo delas crescia. A resistência delas era no ringue”, como se houvesse relação clara de causa e consequência entre ambos, e a luta possuísse um sentido de militância política para a tia. Mesmo a decisão de revelar a homossexualidade da tia e da avó, que aparentemente morreram sem que esse fator viesse a público, pode ser questionada. Que direito temos de tirar pessoas do armário, especialmente aquelas falecidas e, portanto, incapazes de responder por si próprias, como forma de homenageá-las? Neirud encerra o filme na condição de objeto, ao invés de sujeito. De mulher gorila, converte-se em mulher fetiche.

Neirud (2023)
3
Nota 3/10

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