Aya Dhaoui (Fatma Sfarr) sofre pressão da família religiosa para se casar. Esta jovem tunisiana trabalha num hotel como camareira, e está romanticamente envolvida com o chefe, um homem casado que mantém o caso em segredo. Enquanto isso, o país atravessa uma crise política e econômica após a revolução, de modo que vários colegas de Aya perdem o emprego e lutam contra a demissão em massa. Estes eventos poderiam ocupar um longa-metragem inteiro, porém, neste caso, desenvolvem-se nos primeiros dez minutos.
Oito minutos mais tarde, terá acontecido um gigantesco acidente na estrada, culminando em diversas mortes. Única sobrevivente, Aya decide, num gesto irrefletido, esconder sua sorte dos demais. Aproveita o fato que provavelmente seria dada como morta entre os corpos carbonizados (o roteiro inventa a figura de uma passageira feminina extra, pela qual ela poderia ser convenientemente confundida), e decide recomeçar a vida em Túnis. Adota outro nome, consegue dinheiro no hotel, inventa um passado fictício. Agora, ela se torna independente, livre de pressões familiares e sociais. Aluga um quarto na casa de outra mulher, começa a sair à noite. Inventa-se dona do próprio destino.
O andamento atribulado pode despertar a impressão de que a busca de Aya por liberdade resulta num calvário interminável por culpa dela. Felizmente, o drama se recupera a tempo, evitando servir de bandeira às vozes reacionárias.
Como se percebe, A Mulher que Nunca Existiu está repleto de acontecimentos. As duas horas de duração condensam uma quantidade de reviravoltas digna da temporada inteira de uma série policial: uma vez em sua “nova vida”, a jovem se envolve num assassinato, é perseguida pela polícia, converte-se em pária da luta do povo contra a opressão do Estado, etc. O diretor e roteirista Mehdi Barsaoui deseja abordar inúmeros temas sociais, tratando de embutir suas maiores preocupações na jornada única da heroína. Há menor preocupação em elaborar uma trama naturalista do que em organizar um drama exemplar, onde cada personagem ou situação representa uma causa, um tópico de conversa.
O andamento atribulado pode despertar a questionável impressão de que a busca de Aya por liberdade resulta num calvário interminável, por culpa dela. A sucessão de revezes, perseguições e ataques sugere (sobretudo no segundo terço da trama) de que ela estava melhor sob o comando rígido dos pais religiosos, arrumando quartos do hotel e esperando pelo dia em que o chefe abandonaria, enfim, a esposa, para viver abertamente o romance entre os dois. O percurso pode se encaixar na leitura pessimista da fábula de precaução, como se as incontáveis agressões decorressem da ousadia de Aya em burlar as regras — em outras palavras, uma punição pelo desejo de autonomia. Caso aceitasse ser uma mulher bela, recatada e do lar, isso nunca teria acontecido.
Felizmente, o drama se recupera a tempo, evitando servir de bandeira conservadora às vozes reacionárias. Encontra-se uma maneira melodramática de indicar que, apesar de enfrentar estupro, pressão policial, constrangimento público e agressão nas ruas, a heroína ainda prefere a situação atual à rotina domesticada de antigamente (as alternativas para as mulheres não soam particularmente promissoras). De qualquer modo, a narrativa investe naquilo que os franceses chamam de descida aos infernos — uma sucessão interminável de provações, umas piores que as outras. Na busca de escapar a um conflito, depara-se outro ainda pior, e assim por diante.
Roteiros do tipo podem cair na armadilha de se divertirem com o sofrimento alheio. Há tantas formas de abuso na narrativa que o espectador pode se indagar se uma cineasta mulher teria mantido a cena de estupro, filmada daquela maneira brutal. Ou, ainda, se teria abandonado Aya enquanto condutora da trama para, na problemática segunda parte da trama, investir num embate entre policiais a respeito da decisão de acobertar o crime cometido pelos agentes do Estado. (Neste momento, não-testemunhado pela jovem, abandona-se o ponto de vista da protagonista pela primeira vez. Deixamos de enxergar o mundo pelos olhos dela). Rumo ao final, a trama ainda encontra espaço para detalhar o passado traumático de um bom policial arrependido, além de apontar para resoluções mágicas e otimistas, nas quais a justiça acaba por funcionar, mais cedo ou mais tarde. Basta esperar.
A produção ganharia com um roteiro mais enxuto, conciso, permanecendo fiel à perspectiva feminina em detrimento dos quiproquós convencionais do gênero policial. Mesmo assim, desempenha com razoável organicidade tamanhas concessões ao realismo, sobretudo graças à atuação de Fatma Sfarr. Ela evita glorificar as atitudes desta mulher, ou se apiedar face às desgraças que lhe ocorrem. Em sua interpretação, Aya segue um caminho sem questionamentos, conservando certo mistério aos olhos do espectador. Cada um pode avaliar os motivos mais profundos pelos quais a mulher manteria, apesar dos riscos, o segredo de sua verdadeira identidade.
Apesar de viver um impasse de ordem moral, a personagem jamais se questiona moralmente — ela não enfrenta dúvidas nem arrependimentos. Em consequência, representa uma figura de ação, no sentido estrito do termo. Aya segue apenas em frente, como se a decisão abrupta de abandonar o destino planejado para ela fizesse parte de um plano cuidadosamente orquestrado. Hollywood certamente trataria esta reinvenção de maneira espetacular, empolgante, repleta de perigos em cada esquina. Ora, na produção tunisiana, a verdade demora a alcançá-la, e a ineficiência do governo lhe permite usufruir das falhas sistêmicas, na condição de pessoa oficialmente morta. Barsaoui trata esta concessão às leis enquanto uma não-questão, um pequeno arranjo com a ordem — uma infração de menor importância.
A Mulher que Nunca Existiu — título inapropriado para o original Aïcha, que representou o filme no mundo inteiro — encerra-se como uma experiência desigual, embora repleta de pontos fortes. Transmite a impressão de uma sociedade vibrante, mesmo que longe de uma igualdade e paridade de gêneros. As mulheres tomam o controle de suas vidas contra companheiros violentos e, sobretudo, contra outras vozes femininas (mães, amigas) que ainda se esforçam em prendê-las em posto de submissão. O drama se conduz com elegância e segurança notáveis para um cineasta em seu segundo longa-metragem, auxiliado pela edição de Camille Toubkis (de Azul É a Cor Mais Quente e O Segredo do Grão), capaz de costurar trechos que soariam desiguais nas mãos de editores menos experientes. Paira a sensação de que, com um roteiro mais polido em mãos, o cineasta venha a apresentar projetos excelentes num futuro próximo.