A Natureza das Coisas Invisíveis (2025)

A rede de apoio

título original (ano)
A Natureza das Coisas Invisíveis (2025)
país
Brasil, Chile
gênero
Drama
duração
90 minutos
direção
Rafaela Camelo
elenco
Laura Brandão, Serena, Larissa Mauro, Camila Márdila, Aline Marta Maia
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

Duas crianças se confrontam à morte — ou, pelo menos, à iminência da morte. Glória (Laura Brandão) passa os dias pelo corredor de um hospital devido ao trabalho da mãe, uma enfermeira. A garota traz uma grande cicatriz no peito, fruto do transplante cardíaco alguns anos antes. Por isso, está familiarizada com o ambiente hospitalar, e se torna amiga dos idosos internados. Já Sofia (Serena) acompanha a bisavó, que se machucou em uma queda doméstica. A senhora com Alzheimer (interpretada por Aline Marta Maia) alterna momentos de lucidez com outros de devaneio e esquecimento.

Não se trata de um ambiente adequado às crianças, é claro, embora a direção de Rafaela Camelo se prive de julgamentos morais, tanto às mães das duas quanto às instituições, que permitem às crianças correrem pelos corredores. Compreende a dificuldade destas mães solo em ocupar as meninas em período de férias escolares, razão pela qual a amizade da dupla é vista com bons olhos por todas. A cineasta decide se concentrar nas famílias comandadas unicamente por mulheres, de diversas gerações. Nunca é questão de investigar a responsabilidade dos pais e companheiros — estes núcleos femininos bastam por si próprios.

O longa-metragem adota uma linguagem da delicadeza, privilegiando instantes de contemplação e de silêncio. Assim, a morte e as doenças nunca adquirem o status de algo empolgante ou tenso para o espectador: cada protagonista com frágil saúde física e mental parece carregar seus dilemas há muito tempo, sem perspectivas de mudança a curto prazo. Por isso, a enfermidade não necessariamente implica em tristeza ou desespero, apenas numa melancolia constante, que a direção de fotografia capta muito bem, em luzes e cores. Por baixo da alegria infantil, impera a estafa de ambas as mães.

Uma forma interessante de cinema político, no sentido de apontar para novas configurações familiares, para as identidades queer e a autonomia feminina sem precisar transformar estes tópicos numa problemática.

Ao mesmo tempo, A Natureza das Coisas Invisíveis está sempre disposto a acenar para o lúdico, ou mesmo o fantástico, em contraponto à dureza da rotina urbana. A narrativa se inicia com a imagem do porco em ambiente escolar, para investir adiante nas curas tradicionais às feridas do corpo e do espírito. A medicina das ervas se contrapõe àquela da alopatia, enquanto o roteiro divide sua jornada em duas partes perfeitamente simétricas: a primeira metade no hospital, e a segunda metade, na chácara de Simone (Camila Márdila), que acolhe a enfermeira Antônia (Larissa Mauro) e a filha para um merecido descanso de todas.

Desta forma, o projeto oferece um respiro ao espectador e às personagens. É evidente o carinho da cineasta pelas protagonistas, e a vontade de encontrar formas de escapatória nada condescendentes, nem idealizadas. Quando chegam à natureza, elas relembram episódios da infância, brincam com fósforos queimados, discutem receitas de bolo. A bisavó ainda precisa de cuidados no quarto ao lado, porém mostra-se mais saudável e disposta quando escapa ao frio ambiente do hospital. A fotografia gosta de opor estes espaços como esferas antagônicas e excludentes — uma impessoal, inóspita, e a outra propensa ao calor e à coletividade.

É certo que alguns diálogos soam escritos demais para a boca das crianças, e movidos por um linguajar adulto, ou por tal nível de autoconsciência que soaria incompatível com as pequenas. “Eu que sou estranha, porque faço uma pergunta completamente razoável?”, contesta Glória, antes de confrontar a mãe ao fato de passar os dias cercada por cadáveres e enfermos. Estranha-se tamanha intelectualização por parte da garota de 10 anos. “Eu mudei de nome porque sou uma menina trans”, argumenta Sofia, novamente, com um discurso que soa estranhamente pronto para a garota que não costuma discutir este tema com outras pessoas. Às vezes, as trocas são polidas e funcionais demais, sem permitir os erros, hesitações ou equívocos típicos do registro oral.

O projeto, em sua totalidade, segue uma cartilha bastante funcional, onde cada cena serve a propósitos específicos, e contribui de maneira direta ou ao andamento da trama, ou à revelação de informações importantes a respeito dos personagens. Para um filme tão dedicado à libertação das regras, e ao encontro de si em meio à natureza, o resultado carece de ousadia e verve, ou de instantes de aspereza para além da aparência aprazível do conjunto. Trata-se de uma obra bela, agradável, mas também marcada por certo receio de incomodar ou desagradar.

Obviamente, isso não retira os méritos de um drama de estreia excepcional, capaz de deixar as crianças bastante confortáveis para interações, entre o sentimento de espontaneidade e uma dinâmica roteirizada que ainda permite notável liberdade cênica. As atrizes adultas apresentam uma entrega orgânica, tanto no trato dos diálogos quanto na expressão e no corpo. Camila Márdila, Larissa Mauro e Aline Marta Maia apresentam trabalhos igualmente competentes, numa proposta em que nenhuma atuação ou função criativa (fotografia, som, trilha, montagem) chama atenção excessiva a si própria.

No final, A Natureza das Coisas Invisíveis representa uma forma interessante de cinema político, no sentido de apontar para novas configurações familiares, para as identidades queer e a autonomia feminina sem precisar transformar estes tópicos numa problemática, nem apontar dedos a culpados por obstáculos. Em sua aparente simplicidade, concebe uma discreta teia de apoio entre mulheres que se compreendem rapidamente, por atravessarem vivências similares. Entende que a possível fraqueza destas personagens possa constituir a sua força, e que as diferenças as tornam valiosas ao olhar uma da outra (vide o desenho infantil, com a cicatriz orgulhosamente traçada no peito). Uma estreia de peso para Rafaela Camelo, que desperta belas expectativas para seus próximos passos.

A Natureza das Coisas Invisíveis (2025)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.