A Redação (2024)

O caos na Ucrânia pré-guerra

título original (ano)
Redaktsiya (2024)
país
Ucrânia, Alemanha, Eslováquia, República Tcheca
gênero
Comédia
duração
126 minutos
direção
Roman Bondarchuk
elenco
Dmytro Bahnenko, Zhanna Ozirna, Rymma Ziubina, Andrii Kyrylchuk, Oleksandr Shmal, Vasyl Kukharskyi, Maksym Kurochkin, Oleksandr Hannochenko, Serhii Ivanov
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Aparentemente, a Ucrânia já vivia uma situação caótica muito antes da guerra contra a Rússia. Este é o ponto de partida de A Redação, uma estranha comédia de erros destinada a revelar inúmeras falhas estruturais na sociedade local. De maneira didática, os letreiros iniciais indicam: “Sul da Ucrânia: seis meses antes da eclosão da guerra”. Logo, pela menção explícita ao conflito, o cineasta Roman Bondarchuk condiciona a leitura sintomáticas dos eventos: todos os dilemas servem a representar aquilo que viria a seguir.

No caso, o cineasta deseja criticar uma infinidade de problemas. Ele aponta o dedo à corrupção dos políticos e à hipocrisia dos líderes mundiais que fingem se importar com a região. Sublinha a conivência da imprensa ao acobertá-los, os crimes ambientais, o machismo estrutural, a violência doméstica, o desemprego, os sequestros de opositores do governo, o individualismo crescente em tempos de YouTube e TikTok, e o império de fake news, para citar alguns.

Isso significa que o roteiro se torna uma metralhadora de ataques virulentos, pois cômicos, exagerados e caricaturais (sobretudo na reta final). Não basta insinuar que os jornais estão sendo fechados, é preciso se voltar a um grande prédio abandonado, em ruínas, onde um único homem constitui “a redação”. Não basta dizer que os conservadores ridicularizam feministas, é preciso repetir uma sequência de piadas relacionadas à personagem que insiste em ter suas funções chamadas pelo pronome feminino: a jornalista, a investigadora, a pesquisadora.

Um novo esforço retórico e condescendente em meio às grandes comédias populares destinadas a criticar “tudo o que está aí” — desta vez, aplicada à realidade na Ucrânia.

Alguns símbolos são utilizados ao limite da exaustão — caso representado sobretudo pelas dancinhas do TikTok. O diretor ucraniano possui imenso desprezo por esta forma de apelo popular (com razão), de modo a conceber estas danças enquanto ferramenta fundamental durante uma campanha política. Talvez a imagem de candidatos engravatados rebolando de maneira desajeitada diante de telefones celulares seja engraçada na primeira vez, e curiosa na segunda vez. Quando a brincadeira surge de novo, e de novo, perde seu impacto e o senso crítico, restando somente uma função retórica na narrativa.

“As pessoas só querem comer, beber, foder e rezar. Elas só vão pensar em guerra quando tiverem tanques de Moscou pelas ruas”. Frases como esta, que constituem nosso presente, tornam-se avisos óbvios para o futuro próximo dos personagens. É difícil não ler cada signo ou gag enquanto representação de um povo alienado junto a um poder corrompido, permitindo a ascensão de governantes desequilibrados que dariam origens às guerras. Talvez esta não seja a explicação socioeconômica mais complexa do atual conflito macroestrutural, no entanto, constitui o desabafo sincero de um diretor cansado da representação séria e “oficial” das coisas.

Por isso, Bondarchuk abraça incongruências, passagens acessórias e soluções mágicas. A abertura à comédia e à fantasia pretende justificar o desaparecimento fácil de alguns personagens (e seu retorno), o namoro conveniente da mãe do protagonista com um político poderoso; a presença de uma jornalista casada com outro sujeito influente, etc. O núcleo de seis ou sete personagens contém políticos, jornalistas, ativistas e público “médio”, que prefere fechar os olhos aos problemas. “A gente não conversa sobre dinheiro”, revela a mãe do herói, em relação ao namorado rico.

É possível que o projeto mirasse no humor corrosivo, e voluntariamente desestruturado em termos narrativos, de Radu Jude (Não Espere Muito do Fim do Mundo), cineasta conhecido por disparar contra os cânones desgastados do poder romeno. No entanto, ele fica mais perto do senso de choque gratuito de Ruben Ostlünd (Triângulo da Tristeza) ou Adam McKay (Não Olhe para Cima) em sua dimensão catastrofista da análise social. O cineasta ucraniano está menos interessado em analisar a guerra do que em satirizá-la, dizendo “basta”, “não aguento mais”. Trata-se de um movimento bastante legítimo em termos psíquicos, porém insuficiente enquanto articulação política e cinematográfica.

A lógica do vale-tudo inclui uma marmota animada digitalmente (de notável artificialidade, voluntária ou não), uma chacota de Boris Johnson e outros líderes mundiais, digna de um episódio de Casseta e Planeta, de pichações “Putin é um escroto” pelos muros (em frente à redação do jornal, é claro), além de uma seita gerenciada por coaches e líderes espirituais. Para cada item concebido ao acaso durante o brainstorming criativo, o diretor parece ter respondido apenas “sim”. A pobre montagem que se vire para dar algum sentido à viagem. Ela se esforça, embora nunca afaste a impressão de esquetes independentes, coladas às pressas.

Neste sentido, Yura equivale a um protagonista desimportante. O jovem pesquisador, procurando marmotas em via de extinção, assume os postos de fotógrafo e jornalista. Ele se apaixona; perde o melhor amigo à repressão. Mesmo assim, os eventos ocorrem ao redor dele, apesar dele. Interpretado de maneira desafetada e blasé, o sujeito ilustra a passividade conformista diante do caos: se tudo está uma grande porcaria, e nada será consertado nunca, por que eu deveria me importar? Dedicar tempo e esforços, lutar contra? De que adianta?

The Editorial Office pode ser interpretado enquanto um novo esforço retórico e condescendente em meio às grandes comédias populares destinadas a criticar “tudo o que está aí” — desta vez, aplicada à realidade na Ucrânia. Seu valor reside na condição de rara obra provinda deste país, disponível aos olhos estrangeiros e presente num dos maiores festivais do mundo, elaborada em pleno conflito, representando-o metaforicamente. No entanto, as qualidades teimam em ultrapassar esta dimensão simbólica. 

Por fim, o valor deste discurso político demonstra tanto potencial de refletir acerca da política mundial quanto a imagem patética de presidentes de potências mundiais plantando uma árvore em nome da paz. Sim, este gesto seria ridículo e insuficiente. Entretanto, a simples constatação tampouco se prova um golpe particularmente astuto de raciocínio. Por trás da aparente engenhosidade do procedimento, sobra a facilidade de apontar os dedos e reconhecer falhas, sem parar para pensar de onde vêm, devido a quais mecanismos e grupos sociais se sustentam, e para onde poderiam ir. Denúncia sem compreensão social e histórica corresponde a mera filosofia de boteco. 

A Redação (2024)
4
Nota 4/10

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