A Última Rainha (2022)

Os homens da vida dela

título original (ano)
La Dernière Reine (2022)
país
França, Argélia, Taiwan, Arábia Saudita, Qatar
gênero
Drama, Guerra
duração
110 minutos
direção
Adila Bendimerad, Damien Ounouri
elenco
Adila Bendimerad, Dali Benssalah, Mohamed Tahar Zaoui, Imen Nouel, Nadia Tereszkiewicz, Yanis Aouine, Lila Touchi, Houria Bahloul
visto em
Cinemas

O filme argelino-francês parte de uma premissa ambiciosa: recriar o contexto social e político do século XVI, em meio a guerras sanguinárias e lutas pelo poder. O foco se volta à princesa Zaphira, que teria resistido ao domínio masculino, inclusive aquele do marido, Salim Toumi, o último rei de Argel. Assim, visa destacar um germe do feminismo de séculos atrás, na forma de uma insurreição solitária e excepcional. 

Parte-se do intuito de resgatar a existência daqueles que não figuram nos livros de história — não por acaso, a protagonista é considerada uma lenda. De acordo com os letreiros finais, nunca se soube se os fatos imputados à última rainha da Argélia ocorreram de fato. Ao invés de explorar esta lacuna nos registros, a ficção prefere imaginar que aconteceram, sim, e tratar a narrativa com a seriedade sepulcral dos episódios “inspirados numa história real”.

Esta gravidade prejudica o resultado do longa-metragem. Por um lado, os diretores Adila Bendimerad e Damien Ounouri desejam construir um gigantesco épico de ação, incluindo cenas de batalha sangrentas com centenas de figurantes, navios, armas, efeitos visuais, coreografias de luta. Aplicam uma infinidade de câmeras lentas para valorizar corpos caindo no chão, guerreiros saltando sobre inimigos ou tendo o braço mutilado. Talvez o referencial sejam as produções hollywoodianas, a exemplo de Coração Valente (1995).

Busca-se narrar os sentimentos e os feitos da mulher lendária, porém sem se colocar na perspectiva dela, nem enxergar o mundo por seus olhos. Saphira ainda é descrita por terceiros, observada de longe, e retirada de cena em instantes-chave.

Por outro lado, o orçamento não se presta a tamanha espetacularização da guerra, de modo que a encenação soa insuficiente para os efeitos almejados. Além disso, Saphira habita uma esfera muito distante dos homens com seus sabres na mão. Contar a história dela implica evocar a guerra, mas não necessariamente recriá-la para o prazer imersivo do espectador. Aquilo que enxergamos, em termos de duelos fratricidas, não corresponde em nada ao que a protagonista enxerga, por se encontrar presa num palácio luxuoso, a centenas de metros do combate.

Esta discrepância chama atenção a um problema essencial do projeto: a questão do ponto de vista. Busca-se narrar os sentimentos e os feitos da mulher lendária, porém sem se colocar na perspectiva dela, nem enxergar o mundo por seus olhos. Saphira ainda é descrita por terceiros, observada de longe, e retirada de cena em instantes-chave, quando os diretores precisam fazer a trama avançar. Em última instância, não constam a história dela, mas uma história da qual ela faz parte.

A personagem precisa verbalizar as suas vontades e seus conflitos, pois não se tornam claros em imagens. Em consequência, declara ao próprio marido que não fazem sexo há um ano (única maneira encontrada pelo roteiro para informar o espectador); afirma que morreria pelo filho, embora quase nunca os vejamos juntos; e enfrenta homens poderosos, mesmo sem construção psicológica e ideológica prévia, capaz de justificar tamanha coragem para a época. Precisamos acreditar na sugestão de valentia do texto, uma vez que ela não se traduz em construção cênica.

Além disso, Saphira é reduzida à função social perante aos homens de sua vida. Torna-se mãe, esposa, irmã, pretendente. Seus pensamentos dizem respeito apenas ao marido amado (“Você ficou sozinho entre os lobos. Você é corajoso. Você é o nosso destino”, ela declama); à busca do filho cujo propósito na narrativa se resume a fugir inúmeras vezes para causar problemas à mãe; e à recusa dos avanços do pirata que procura tê-la em sua cama. A heroína deseja ver a guerra acabar para que o marido volte a dormir do lado dela, não por qualquer pensamento estratégico a respeito da política argelina. Os homens orquestram o funcionamento público, enquanto a vida das mulheres se atém à esfera privada.

É claro que a condição feminina era extremamente restrita num país conservador, em 1516. No entanto, a produção de 2022, baseada em especulações e fantasias ao invés de fatos, possuiria total liberdade para pressupor os posicionamentos desta mulher, além de seus sonhos e planos para o futuro. Teria sido fundamental descobrir o que resta da mulher quando não está declarando o amor incondicional aos homens de sua vida, no papel de mãe-coragem e esposa-perfeita. 

Mesmo com as amigas, na piscina do palácio, ela se limita a discutir os homens ao redor. A Última Rainha seria um filme de pretensão feminista que não passaria no teste Bechdel, embora uma das diretoras seja uma mulher — Adila Bendimerad, que interpreta o papel principal. A única atualização proposta pelos cineastas diz respeito à textura da imagem, num aspecto digital extremamente nítido, mais propício às produções do streaming do que a uma obra buscando recriar o imaginário de cinco séculos atrás. É muito difícil, diante desta tecnologia ágil e contemporânea, acreditar na recriação do Império Otomano.

Ao menos, o drama oferece boas atuações, sobretudo da cineasta-protagonista, além de conseguir atribuir certas nuances aos homens-vilões por quem são apaixonadas. A obra certamente possui qualidades de fotografia e montagem, na organização lírica e literária, com capítulos acompanhados de títulos poéticos. No entanto, soa indeciso quanto ao filme que pretende ser. Bendimerad e Ounouri hesitam entre a imersão pop e o distanciamento crítico; entre o cinema de espetáculo e a ótica da intimidade; entre uma história que fale por Saphira, ou que a utilize enquanto mero objeto de estudo.

Sabemos que houve, provavelmente, uma figura ímpar, capaz de confrontar o marido, o irmão, e o pretenso amante quando necessário. Ignoramos as circunstâncias em que isso aconteceu, e de que maneira ela fomentou uma subjetividade de exceção. Conhecemos fatos, mas desconhecemos o contexto psicológico e social em que se inseriam. Sem estas informações, como extrair qualquer reflexão a partir de um episódio tão singular?

A Última Rainha (2022)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.