Declarações de amor ao cinema manifestam-se por meio de abordagens muito diferentes. O filme-homenagem pode se voltar ao prazer do espectador na sala escura, ou ao desejo de criar, que se completaria apenas na realização. Pode compreender a arte enquanto acúmulo de filmes e diretores queridos, ou então, enquanto conceito abstrato da manipulação da luz e da persistência retiniana. O cinema dos nossos afetos pode ser feito de passado (os clássicos) ou de futuro (os filmes que quero fazer); de experiências solitárias ou coletivas; de psicologia ou de maquinaria (a câmera, o projetor); de ferramentas analógicas ou digitais.
Em A Última Sessão, o diretor Pan Nalin honra o cinema por todos estes ângulos — além de mais alguns. Talvez a principal singularidade do drama se encontre nesta ambição tão utópica quanto generosa em se tornar um filme total, espécie de manifesto de amor ao cinema que englobe todos os outros exemplares do gênero. Combina a infância e a projeção de filmes, de Cinema Paradiso, com o elogio ao fazer cinematográfico, de Os Fabelmans; a admiração pelas salas de cinema decadentes, de Adeus, Dragon Inn, com o deleite estético de mergulhar numa sessão, de A Rosa Púrpura do Cairo, e assim por diante.
O foco se encontra em Ramay (“tempo”, em Gujarati), menino que parte de um conflito formador contraditório. O pai o leva ao cinema, apesar da aversão por filmes, sugerindo que “o cinema não é pra gente” (pobres, no caso). Afirma que esta será a primeira e última experiência do filho, que toma gosto pelas sessões e começa a trocar a sala de aula pela sala escura. Ramay negocia sua merenda pelo ingresso das sessões, até se tornar amigo de um projecionista que o ensina a técnica e os processos dos bastidores, tanto da exibição quanto da produção.
Talvez a principal singularidade do drama se encontre nesta ambição tão utópica quanto generosa em se tornar um filme total, espécie de manifesto de amor ao cinema que englobe todos os outros exemplares do gênero.
Nalin promove, em partes, um filme-encantamento típico destas premissas. Elabora a descoberta da luz, das imagens estáticas em movimento, dos filtros, da sugestão sonora a partir de captações mudas. O menino percebe que as obras não chegam prontas pelas mãos de um Deus criativo, mas são elaboradas com esforço, a partir de inúmeras mãos e saberes. Enquanto diretor improvisado e autointitulado, reúne os amigos para dominar a cadeia produtiva, desenvolvendo seus projetos, filmando-os, e depois exibindo-os num edifício abandonado.
O marketing tem forçado a aproximação com Cinema Paradiso, mas talvez A Última Sessão esteja mais próximo do deslumbrante Jonas e o Circo sem Lona, filme brasileiro que também trazia um menino negligenciando a escola em nome da paixão pela arte (o circo, no caso), que ele praticava com um misto de paixão e amadorismo, da maneira que lhe competia. Jonas e Ramay se entenderiam bem — assim como os pais preocupados de ambos. Parte do humor deste drama decorre do testemunho de crianças desempenhando funções de adultos, tais quais dirigir um filme, atuar, elaborar peças de maquinário cinematográfico, pintar fachadas de cinemas e afins. Rimos por assistir a crianças executando tarefas para as quais não as consideramos aptas.
No entanto, o longa-metragem se torna mais especial conforme encara contradições essenciais a esta arte. Por exemplo, o cineasta confronta o mito do cinema enquanto “arte popular” de dificílimo acesso aos pobres. Como pode apenas a elite econômica ter acesso às produções visadas para o “público médio”? Considerando que a dedicação ao lazer seria vergonhosa aos Gujaratis, como lidar então com os filmes acerca de santos, figuras defendidas pelos próprios líderes contrários ao cinema enquanto investimento pessoal e sentimental?
A narrativa mergulha na experiência espectatorial e cognitiva. Ao posicionar pedaços coloridos de vidro sobre os trilhos do trem, Ramay enxerga a natureza de diferentes cores, e constata sua capacidade de intervir no meio. Depois, brinca com espelhos, e faz projeções em roupas brancas da mãe. Ele se torna agente do cinema, um motor de iniciativa, ao invés do espectador passivo e embasbacado, que a maioria dos dramas metalinguísticos prefere homenagear. A fascinação do pequeno herói não desaparece ao entender que toda construção é falsa (ou ilusória), pelo contrário. Ele abraça o superpoder de elaborar, então, suas próprias ilusões.
O aspecto mais interessante diz respeito ao embate entre o digital e a película. A Última Sessão é realizado em textura impecavelmente digital (nítida, sem granulação), embora vanglorie a película enquanto símbolo maior do cinema. Diversas cenas demonstram Ramay segurando rolos abandonados ou cortados na moviola. Ele se apaixona pelo aspecto físico da criação, ao passo que a chegada dos meios digitais implica na destruição da sala comercial dos sonhos do garoto — a “última sessão” mencionada no título. Tal qual um fantasma, despercebido por todos, ele passeia pelo local onde as películas são destruídas, queimadas e, então, transformadas em objetos, a exemplo de pulseiras coloridas.
Ramay se entristece ao descobrir que seus filmes queridos desaparecem, ainda que manifeste certo espanto diante da transformação dos rolos em produtos cotidianos. Imagina, pelas cores, quais pulseiras nos braços das mulheres teriam sido, um dia, captações de Chaplin, Kurosawa, Lynch, etc. Nalin ainda compara o fogo das fornalhas destruidoras com a luz do projetor. Um destrói, o outro constrói; um proporciona a magia, o outro a aniquila em nome do real (do capital). Existe um gosto amargo nesta constatação severa, menos ingênua do que poderia aparentar à primeira vista.
Enquanto isso, a trama nunca limita seu elogio aos bons filmes. Estimula que se consumam obras de todos os gêneros, feitas por qualquer um, quando estiverem à nossa disposição. Apesar de listar, na abertura e no encerramento, os nomes de sua predileção, o autor manifesta o interesse equivalente de Ramay por qualquer imagem projetada na tela. A paixão do menino vai além dos filmes: ele se apaixona pelo cinema enquanto mecanismo e função social, enquanto possibilidade de expressão e emancipação de uma casta desfavorecida.
Assim, nos meandros deste cinema que dá e toma, que permite e proíbe, que nasce e definha à sua frente, o garoto detecta a dureza da passagem à vida adulta. Algumas crianças testemunham a morte de animais de estimação, ou a separação dos pais, para elaborarem em sua mente que crescer não implica necessariamente em satisfação pessoal. Ramay adquire tal conhecimento a partir da morte simbólica dos rolos de película e da sala de cinema. Para quem quiser enxergar apenas ingenuidade lúdica em A Última Sessão, o filme transborda destas características. No entanto, Pan Nalin também oferece em seu “voo” (maneira como descreve a empreitada) uma percepção do cinema enquanto arte, ofício, trabalho, lazer, consumo e visão de mundo.