Afire possui a aparência inicial de um filme de férias. Os amigos Felix (Langston Uibel) e Leon (Thomas Schubert) decidem passar uns dias no campo. No caminho, o carro quebra. Eles apostam num atalho pela floresta, mas se perdem. Quando finalmente chegam ao local, já havia uma hóspede inesperada na casa — uma bela mulher com seus acompanhantes noturnos, fazendo barulho e perturbando o sono dos dois colegas.
Pela multiplicação de quiproquós e inconvenientes, esta poderia ser uma comédia de erros, baseada nos acidentes de percurso, do tipo que fornece aos protagonistas “um verão que jamais esquecerão”. O comportamento amigável de Nadja (Paula Beer), com quem dividem a casa, se mostra propício a uma leve história de amor, talvez prejudicada pela rivalidade dos amigos que brigariam pelo coração da moça.
No entanto, Petzold começa a desmontar as peças desta estrutura desgastada, uma a uma. Primeiro, ao posicionar o ponto de vista junto a Leon, um escritor fracassado, neurótico e pessimista. Ao contrário dos colegas leves e divertidos, ele insiste em recusar as propostas de jantar entre amigos e os banho de mar. O rapaz tem falas grosseiras, desajeitadas, que poderiam inclusive despertar certa antipatia do espectador pelo herói. O diretor situa o olhar junto ao personagem mais difícil de trabalhar.
Em especial, o projeto acena a um teor trágico no horizonte. Este filme de praia, cercado pelo mar e pelas ondas, é curiosamente regido pelo fogo. Desde o princípio, avisa-se que os incêndios estão provocando uma catástrofe nas florestas locais. Subindo no telhado da casa, eles avistam o clarão vermelho à distância. Neste sentido, os perigos imaginários do início (os barulhos na floresta, o medo de uma invasão doméstica) adquirem um caráter premonitório: há algo grave chegando no horizonte.
A montagem estabelece um ritmo precioso, segurando as cenas um pequeno segundo a mais do que o comum, de modo a atenuar o aspecto cômico e sugerir o drama iminente.
Deste modo, a experiência se desenvolve de maneira ambígua. Por um lado, possui todos os ingredientes da comédia romântica. A amizade entre eles se estreita, incluindo a presença de Devid (Enno Trebs), o salva-vidas (ou nadador de resgate, como prefere ser chamado) capaz de acender a chama de um erotismo latente. Por outro lado, nos lembra que eventualmente o descanso terminará de maneira sombria. Isso justificaria a necessidade de aproveitar o tempo presente.
O cineasta conduz sua obra com uma segurança ímpar. Afire jamais demonstra sinais de estetismo vazio, nem de vaidade do diretor. Há planos e contraplanos seguros, planos de conjunto expressivos, e sobretudo uma utilização excelente dos planos subjetivos, quando enxergamos o mundo pelo olhar desejante, receoso ou irritado de Leon. O diretor de fotografia Hans Fromm sabe onde posicionar a câmera para valorizar o espaço — as cenas do jogo noturno, com raquetes fluorescentes; da escapada do amante na madrugada e da análise de fotografias do portfólio de Felix representam pequenas pérolas do humor de situação.
Ao mesmo tempo, a montagem estabelece um ritmo precioso, segurando as cenas um pequeno segundo a mais do que o comum, de modo a atenuar o aspecto cômico e sugerir o drama iminente. O humor nunca nasce de diálogos nem de reviravoltas fantasiosas, apenas de uma sensação de desconforto ou não-pertencimento. Seria tão fácil forçar os traços desta comédia que a capacidade de mantê-la nos limites de um naturalismo banal, quase inconsequente, constitui o verdadeiro desafio enfrentado pelo diretor.
Caso não sustentasse a trama nestas condições, ele jamais conseguiria efetuar a transição orgânica rumo ao drama, que invade a história no terço final. O fato que os personagens não se conheçam muito bem — há dúvidas quanto à personalidade de Devid, a formação profissional de Nadja, e mesmo Leon e Felix possuem segredos um com o outro — proporciona material equivalente para a comédia e para o suspense. Afinal, pessoas desconhecidas podem ser empolgantes ou perigosas, a gosto.
O longa-metragem também aposta no caráter cíclico para orquestrar um tom fabular, próximo do realismo fantástico. A crítica ao livro de Leon retorna numa versão diferente; a noite mal dormida na parte externa se relaciona com outra, bem dormida por Nadja; o sexo no cômodo ao lado volta com novos participantes. Um poema será repetido duas vezes consecutivas, e as fotografias de Leon se organizam aos pares. Até os ruídos de javali, no começo, voltam num instante importante a seguir. Cada elemento é plantado, e então, com calma, amadurecido e colhido em novo formato.
Já as interações são baseadas em conversas simples e verossímeis, demonstrando o talento impressionante na construção de diálogos, e a capacidade de equilibrar o aspecto solar de Felix e Nadja com aquele mais terreno e pesado de Leon. Os atores se prestam a um jogo de disponibilidade e presença ativa, sem grandes trabalhos de composição nem uma investigação profunda da psique de cada personagem. Eles sustentam a aparência de farsa e improbabilidade, justificada pelas descobertas ao longo da trama.
O pequeno grão de absurdo, que poderia explodir no humor, prefere se traduzir num drama chocante, pois abrupto. Dizem os principais estudos de roteiro cinematográfico que a melhor conclusão é aquela que chega de maneira inesperada, no entanto, quando se concretiza, aparenta ter sido a única solução possível ao conflito. Algo semelhante ocorre aqui, no que diz respeito à tensão entre o quarteto e à arte dos protagonistas. Este desfecho resolve todas as pendências de maneira bastante satisfatória, e mesmo assim, provoca um impacto considerável quando ocorre.
Por fim, Afire efetua um caminho progressivo e discreto entre a total inconsequência a algo consequente até demais; da água ao fogo. Considerando que a água já constituía o tema a obra anterior de Petzold, Undine (2020), pode-se dizer que um elemento cede espaço à chegada de seu sucessor. O autor demonstra aqui a rara capacidade de manejar uma radical transformação de tons e desenvolvimento dos personagens na base da progressão, sem rupturas marcantes. O recurso soa leve, fácil, de uma costura invisível.
No entanto, para além das risadas e das lágrimas, questionamentos muito densos são plantados na conclusão, para reverberarem com o espectador após a sessão. Quem diria: havia diversos elementos desenvolvidos por trás da aparência do engraçado filme de férias e do romance com a mulher impossível. O fogo, sinal tanto de destruição quanto de recomeço (curiosamente, uma leitura também aplicável à água) adquire seu pleno significado somente quando sobem os letreiros.