Afire (2023)

O incêndio no horizonte

título original (ano)
Roter Himmel (2023)
país
Alemanha
gênero
Drama, Comédia
duração
103 minutos
direção
Christian Petzold
elenco
Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs, Matthias Brandt
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Afire possui a aparência inicial de um filme de férias. Os amigos Felix (Langston Uibel) e Leon (Thomas Schubert) decidem passar uns dias no campo. No caminho, o carro quebra. Eles apostam num atalho pela floresta, mas se perdem. Quando finalmente chegam ao local, já havia uma hóspede inesperada na casa — uma bela mulher com seus acompanhantes noturnos, fazendo barulho e perturbando o sono dos dois colegas.

Pela multiplicação de quiproquós e inconvenientes, esta poderia ser uma comédia de erros, baseada nos acidentes de percurso, do tipo que fornece aos protagonistas “um verão que jamais esquecerão”. O comportamento amigável de Nadja (Paula Beer), com quem dividem a casa, se mostra propício a uma leve história de amor, talvez prejudicada pela rivalidade dos amigos que brigariam pelo coração da moça. 

No entanto, Petzold começa a desmontar as peças desta estrutura desgastada, uma a uma. Primeiro, ao posicionar o ponto de vista junto a Leon, um escritor fracassado, neurótico e pessimista. Ao contrário dos colegas leves e divertidos, ele insiste em recusar as propostas de jantar entre amigos e os banho de mar. O rapaz tem falas grosseiras, desajeitadas, que poderiam inclusive despertar certa antipatia do espectador pelo herói. O diretor situa o olhar junto ao personagem mais difícil de trabalhar.

Em especial, o projeto acena a um teor trágico no horizonte. Este filme de praia, cercado pelo mar e pelas ondas, é curiosamente regido pelo fogo. Desde o princípio, avisa-se que os incêndios estão provocando uma catástrofe nas florestas locais. Subindo no telhado da casa, eles avistam o clarão vermelho à distância. Neste sentido, os perigos imaginários do início (os barulhos na floresta, o medo de uma invasão doméstica) adquirem um caráter premonitório: há algo grave chegando no horizonte.

A montagem estabelece um ritmo precioso, segurando as cenas um pequeno segundo a mais do que o comum, de modo a atenuar o aspecto cômico e sugerir o drama iminente.

Deste modo, a experiência se desenvolve de maneira ambígua. Por um lado, possui todos os ingredientes da comédia romântica. A amizade entre eles se estreita, incluindo a presença de Devid (Enno Trebs), o salva-vidas (ou nadador de resgate, como prefere ser chamado) capaz de acender a chama de um erotismo latente. Por outro lado, nos lembra que eventualmente o descanso terminará de maneira sombria. Isso justificaria a necessidade de aproveitar o tempo presente. 

O cineasta conduz sua obra com uma segurança ímpar. Afire jamais demonstra sinais de estetismo vazio, nem de vaidade do diretor. Há planos e contraplanos seguros, planos de conjunto expressivos, e sobretudo uma utilização excelente dos planos subjetivos, quando enxergamos o mundo pelo olhar desejante, receoso ou irritado de Leon. O diretor de fotografia Hans Fromm sabe onde posicionar a câmera para valorizar o espaço — as cenas do jogo noturno, com raquetes fluorescentes; da escapada do amante na madrugada e da análise de fotografias do portfólio de Felix representam pequenas pérolas do humor de situação.

Ao mesmo tempo, a montagem estabelece um ritmo precioso, segurando as cenas um pequeno segundo a mais do que o comum, de modo a atenuar o aspecto cômico e sugerir o drama iminente. O humor nunca nasce de diálogos nem de reviravoltas fantasiosas, apenas de uma sensação de desconforto ou não-pertencimento. Seria tão fácil forçar os traços desta comédia que a capacidade de mantê-la nos limites de um naturalismo banal, quase inconsequente, constitui o verdadeiro desafio enfrentado pelo diretor. 

Caso não sustentasse a trama nestas condições, ele jamais conseguiria efetuar a transição orgânica rumo ao drama, que invade a história no terço final. O fato que os personagens não se conheçam muito bem — há dúvidas quanto à personalidade de Devid, a formação profissional de Nadja, e mesmo Leon e Felix possuem segredos um com o outro — proporciona material equivalente para a comédia e para o suspense. Afinal, pessoas desconhecidas podem ser empolgantes ou perigosas, a gosto.

O longa-metragem também aposta no caráter cíclico para orquestrar um tom fabular, próximo do realismo fantástico. A crítica ao livro de Leon retorna numa versão diferente; a noite mal dormida na parte externa se relaciona com outra, bem dormida por Nadja; o sexo no cômodo ao lado volta com novos participantes. Um poema será repetido duas vezes consecutivas, e as fotografias de Leon se organizam aos pares. Até os ruídos de javali, no começo, voltam num instante importante a seguir. Cada elemento é plantado, e então, com calma, amadurecido e colhido em novo formato.

Já as interações são baseadas em conversas simples e verossímeis, demonstrando o talento impressionante na construção de diálogos, e a capacidade de equilibrar o aspecto solar de Felix e Nadja com aquele mais terreno e pesado de Leon. Os atores se prestam a um jogo de disponibilidade e presença ativa, sem grandes trabalhos de composição nem uma investigação profunda da psique de cada personagem. Eles sustentam a aparência de farsa e improbabilidade, justificada pelas descobertas ao longo da trama. 

O pequeno grão de absurdo, que poderia explodir no humor, prefere se traduzir num drama chocante, pois abrupto. Dizem os principais estudos de roteiro cinematográfico que a melhor conclusão é aquela que chega de maneira inesperada, no entanto, quando se concretiza, aparenta ter sido a única solução possível ao conflito. Algo semelhante ocorre aqui, no que diz respeito à tensão entre o quarteto e à arte dos protagonistas. Este desfecho resolve todas as pendências de maneira bastante satisfatória, e mesmo assim, provoca um impacto considerável quando ocorre.

Por fim, Afire efetua um caminho progressivo e discreto entre a total inconsequência a algo consequente até demais; da água ao fogo. Considerando que a água já constituía o tema a obra anterior de Petzold, Undine (2020), pode-se dizer que um elemento cede espaço à chegada de seu sucessor. O autor demonstra aqui a rara capacidade de manejar uma radical transformação de tons e desenvolvimento dos personagens na base da progressão, sem rupturas marcantes. O recurso soa leve, fácil, de uma costura invisível. 

No entanto, para além das risadas e das lágrimas, questionamentos muito densos são plantados na conclusão, para reverberarem com o espectador após a sessão. Quem diria: havia diversos elementos desenvolvidos por trás da aparência do engraçado filme de férias e do romance com a mulher impossível. O fogo, sinal tanto de destruição quanto de recomeço (curiosamente, uma leitura também aplicável à água) adquire seu pleno significado somente quando sobem os letreiros.

Afire (2023)
9
Nota 9/10

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