Existem muitos motivos pelos quais este filme poderia ter dado errado. Valérie Lemercier escreve, dirige, produz e estrela a biografia musical, o que lhe permite pouco recuo em relação à trama. Trata-se de uma biografia da cantora Céline Dion, mas sem mencioná-la, preferindo transformar a artista na fictícia Aline Dieu (a priori, por uma questão de direitos autorais). A narrativa vai do nascimento à idade de 50 anos, inserindo digitalmente o rosto da atriz adulta numa criança de doze anos de idade.
No entanto, o resultado surpreende positivamente. Primeiro, porque se assume como fábula, aberta ao realismo fantástico. Uma criança magicamente canta com uma voz impecável, através de seu rosto de adulta, sendo a caçula de quatorze irmãos numa casa musical e colorida. Ao receber o namorado na porta de casa, seus cabelos voam, ainda que não exista vento nenhum. Esta abertura ao improvável alertam o espectador quanto ao universo de exageros e de imaginação, em chave oposta à seriedade solene esperada das cinebiografias tradicionais.
Em segundo lugar, a decisão por uma biografia fictícia retira o peso do filme em “contar a verdade”. Fãs da canadense perceberão com clareza várias passagens que correspondem à vida da cantora, além do trabalho da protagonista para se parecer com o referencial. No entanto, o amor imaginado entre Aline Dieu e seu empresário mais velho, Guy-Claude Kamar (Sylvain Marcel), permite inventar passagens que favoreçam a ficção. “O nome dela é Céline, você disse?”, pergunta o empresário durante o primeiro teste. A mãe corrige: “Aline, sr. Kamar. Aline”.
Há décadas, Lemercier tem se especializado numa comédia terna, do tipo que critica a si mesma enquanto perdoa as próprias falhas. Este tipo de humor autorreferencial também contribui a deslocar o longa-metragem do universo de origem. Ela compõe uma protagonista talentosa, porém bastante infantil, ingênua, atrapalhada. Embora certamente cante bem, a heroína deste filme será conhecida sobretudo enquanto filha, amiga, namorada.
Isso significa que Aline: A Voz do Amor (2020) abandona a idealização comum em projetos do gênero. O roteiro nunca insiste que a cantora teria sido a melhor de sua época, a mais talentosa, mais gentil, mais lutadora, nem a mais apaixonada. O percurso não enaltece o sofrimento e as dificuldades, por um lado, nem as conquistas, por outro. Pelo contrário, privilegia um senso de profissionalismo: Aline gosta de cantar, então sobe no palco e canta. Depois, volta para casa como se ocupasse funções burocráticas num escritório qualquer.
De fato, impressiona a capacidade de mesclar vida íntima e profissional. Ao invés de alternar ambas, via montagem paralela, o drama faz com que toda cena de música reflita o estado de espírito da artista, e que os acontecimentos amorosos se traduzam na canção seguinte. Por isso, ambos seguem num fluxo indissociável, sem tempos mortos. Some a obrigatoriedade de uma checklist passando por todos os hits e reviravoltas na trajetória de Céline Dion.
Pelo contrário, a montagem se destaca como um dos elementos mais precisos da jornada. A pequena Aline vai se apresentar a um empresário, então — corte — ela foi aceita pela gravadora. Decide se casar, mas a cerimônia é suprimida. Vence o festival Eurovision (tampouco nomeado), mas sua performance será apenas sugerida. A montagem de Jean-François Elie impede a saturação de cenas musicais, ocultando as obviedades. Ele retira instantes que outros filmes privilegiariam, enquanto preserva o antes e depois dos instantes de transformação.
A decisão de ignorar sequências de maior sentimentalidade rende bons frutos ao resultado, sobretudo ao teor emocional. As catarses musicais e afetivas ocorrem em planos muito abertos, que atenuam os sentimentos no rosto da heroína. O respeito demonstrado numa cena de morte é excelente: determinado personagem apenas aparece deitado numa maca, sem explicações de seu estado de saúde, então — corte — os entes queridos aparecem vestidos de preto. As canções de Céline Dion estão repletas de melodrama exagerado, mas o filme dedicado a ela foge desta armadilha. Até a decisão de cantar My Heart Will Go On ocorre numa hilária sequência de deboche pela orquestração.
Em paralelo, a diretora oferece meia dúzia de momentos memoráveis, porque improváveis neste contexto. A saída da artista para “conhecer o mundo”, nas avenidas de Nova York, é tratada de maneira silenciosa e melancólica. Todas as aparições da mãe Sylvette (Danielle Fichaud) são excelentes, seja pelo talento da atriz, seja pela mistura de afeto e petulância que descreve tão bem o projeto na totalidade. Já a gag do filho esperando a chegada da mãe, pela janela do banheiro, se completa de maneira particularmente bem resolvida com a chegada dos gêmeos — comprovando o talento da criadora para a comédia de situação, ao invés de diálogos.
Aline: A Voz do Amor se encerra como uma biografia muito hábil na arte de contornar os principais problemas do gênero. Inúmeros filmes parecem pedir desculpas ao espectador por não conseguirem incluir uma quantidade maior de cenas e menções ao biografado. Eles se tornam reféns do tema, sedentos demais em agradar ao público. Já a produção franco-canadense-belga parte do pressuposto que os fatos servem de mero material à ficção e, em última instância, a linguagem se impõe ao real. Todos os acontecimentos do filme refletem a vida de Céline? Provavelmente não. Quem se importa?
De costume, a menção a “biografias não-autorizadas” costuma implicar em versões radicais, rebeldes, controversas. Acredita-se que o avesso das romantizações assépticas das biografias produzidas pelos próprios músicos (vide Bohemian Rhapsody, 2018) seria a vontade de chocar. Em contrapartida, impressiona o respeito e a ternura com que Lemercier se apropria da história de Céline Dion, enxergando o lado humano por trás do ícone, sem o aspecto tão incômodo de desvendar segredos, típico dos tabloides sensacionalistas.
Aqui, não existe nada propriamente novo a respeito da cantora. Quem quiser conhecer dados, datas e fatos precisará buscar em outras fontes. Em contrapartida, ela se converte num formidável personagem de ficção, delineado em seus desejos, medos, talentos, sonhos para o futuro. A cineasta deixou o mundo de glamour em segundo plano, ridicularizando-o sempre que possível (vide a divertida sequência da troca do vestido), para privilegiar a narrativa de uma garota comum que, por acaso, sabe cantar.