Pode ser difícil, a princípio, compreender a narrativa e a linguagem de Alma do Deserto. A câmera na mão, tremendo de um lado para o outro, acompanha uma mulher no cartório. O local está repleto de pessoas que falam o tempo inteiro, prejudicando a compreensão de suas demandas. Entendemos que a protagonista busca conseguir um novo RG, mas teria se apropriado de uma carteira de identidade encontrada pelo chão. Além disso, pretende mudar de nome, embora suas digitais não correspondam àquelas presentes no banco de dados. Fala-se algo sobre um incêndio. Sobre uma votação. “Meu problema é que transei, mas não sou assassina”, explica a protagonista. Como assim?
A diretora Mónica Taboada-Tapia poderia apresentar sua protagonista, Georgina Epiayú, explicando calmamente os objetivos e desafios desta mulher. No entanto, prefere inserir o espectador numa busca em andamento, entre peregrinações e provocações entre amigos, até entendermos de fato os conflitos em questão. Trata-se de uma mulher transexual indígena Wayúu, que busca o reconhecimento oficial da identidade feminina para poder votar, pela primeira vez, numa eleição nacional colombiana. Seus papéis foram destruídos num incêndio criminoso, motivado por transfobia. Este último esclarecimento também chega somente no terço final — a montagem não se esforça muito em ajudar o espectador.
O drama parte de captações pouco rigorosas em termos de iluminação, som e edição. Felizmente, Alma do Deserto melhora bastante à medida que a narrativa avança.
Assim, o projeto navega pelas águas férteis entre documentário e ficção. Registra pessoas reais, expondo seus conflitos verídicos, embora encene situações e roteirize algumas atividades para as necessidades da câmera. “Ah, eles estão filmando”, reclama a funcionária do cartório, numa sequência de estilo claramente documental. Adiante, os dois irmãos de Georgina, que não a reconhecem como mulher, conversam entre si que “somos três homens” e, segundos depois, a protagonista entra em cena para conversar com eles. O registro, desta vez, mostra-se abertamente fictício.
A linguagem também se esclarece aos poucos, algo benéfico para um longa-metragem que parte de captações pouco rigorosas em termos de iluminação, som e edição. Em alguns instantes, a câmera treme tanto que parece cair da mão da equipe — e surpreende que este fragmento tenha sobrevivido à montagem. A autora não possui nenhum problema em apresentar um cinema do faça-como-puder, marcado pela urgência e pelo tempo presente, reagindo como consegue a um evento de pouco controle. Estima que a luta desta mulher seja mais importante do que preciosismos estéticos, razão pela qual trabalha com imagens lavadas, e composições de expressividade limitada.
Alma do Deserto melhora bastante à medida que a narrativa avança. Conforme Georgina se desloca pelo território, ela reencontra familiares distantes, conversa com amigas, confessa a tristeza pelo abandono do namorado. “Eu me entreguei a apenas um homem”, sublinha. Começa a procurar por ele, e discutir de maneira mais clara a perseguição que ainda sofre devido à identidade de gênero. A narrativa se organiza e se estrutura, esclarecendo causas e consequências, origens e objetivos. Enfim, a vontade de fazer um filme etéreo cede espaço para a determinação de uma linha temporal.
Nesta passagem, conhecemos melhor os espaços — trata de Uribia, autodenominada “capital indígena da Colômbia” —, e também as demandas práticas do povo Wayúu. Eles se queixam da poluição dos lagos por mineradoras, impedindo a pesca e dificultando a obtenção de água potável. O acesso destes povos aos direitos comuns de qualquer cidadão (a identidade, o emprego, a moradia) é abordado com clareza, assim como a sensação de que homens brancos do Censo visitariam os povoados indígenas com frequência para coletar dados, mas a situação dos habitantes nunca teria melhorado em decorrência destes levantamentos.
Até a travessia de Georgina se torna mais clara quando compreendemos que, devido à idade avançada e a falta de filhos, a mulher teme morrer sozinha, e ser considerada indigente quando encontrarem o corpo, devido à falta de identificação formal. A passagem discreta em que este receio é mencionado sintetiza o isolamento da heroína devido à idade, à transgeneridade e à cultura indígena. Através dela, Taboada-Tapia condensa certa imagem do outro, da alteridade, daquele que não parece pertencer a lugar nenhum.
Por isso, os trajetos a esmo pelo deserto, saindo de uma casa destruída rumo a um vilarejo que não mais a acolhe, servem como metáfora potente do não-pertencimento. Infelizmente, estas imagens se tornam equivalentes, na falta de uma ambição estética precisa por parte da direção de fotografia, ou de um ambiente sonoro que valorize as ações durante o deslocamento. Todas as cenas se equivalem, de certa forma: trata-se de um filme bastante escurecido, mesmo nas cenas de sol escaldante; e o ponto de vista da câmera vagueia sem rumo preciso.
Ao final, resta uma empreitada muito mais interessante enquanto olhar das ciências sociais para um grupo social subrepresentado (não por acaso, a cineasta vem da antropologia) do que em sua expressão artística. De certo modo, as formas não estão à altura da força e obstinação de Georgina. Mesmo assim, a maneira humilde como a protagonista se oferece ao filme, sem vaidade nem pudores, torna seu percurso bastante eficaz em produzir identificação e empatia.