Limbo (2023)

Os mortos-vivos

título original (ano)
Limbo (2023)
país
Austrália
gênero
Drama, Suspense
Duração
108 minutos
direção
Ivan Sen
elenco
Simon Baker, Rob Collins, Natasha Wanganeen, Nicholas Hope, Mark Coe, Joshua Warrior
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Você já viu este filme antes: um detetive soturno viaja a uma cidade de poucos habitantes para investigar um assassinato. No entanto, ninguém na região pretende falar a respeito, e a busca por culpados motiva ameaças graves contra o forasteiro. Enquanto procura por pistas, o homem enfrenta seus próprios demônios, incluindo o abuso de drogas e o abandono do filho pequeno aos cuidados da mãe. 

A televisão, sobretudo com as séries em streaming, se amparou com vigor deste subgênero, produzindo mais histórias do que qualquer espectador teria tempo de acompanhar. True Detective, Mare of Easttown, Top of the Lake, O Assassino de Valhalla, The Sinner, The Undoing e The Killing também correspondem a esta estrutura, com pequenas variações internas. Sugere-se, pela história, que o contato prolongado com a morte e com os aspectos mais cruéis do ser humano teria deixado os protagonistas embrutecidos, traumatizados, e mais propensos aos seus próprios erros de percurso.

Limbo empresta um percurso idêntico, transportado ao cenário do deserto australiano. Travis Hurley (Simon Baker), um policial em descrédito, é encarregado de retomar a investigação sobre o desaparecimento de Charlotte Hayes, vinte anos atrás. Os motivos para a reabertura do caso, neste momento futuro, são incertos. Em seu quarto de hotel, de nome Limbo, o sujeito de poucas palavras injeta heroína no braço antes de dormir. Para o diretor, roteirista, diretor de fotografia, editor e compositor Ivan Sen, personagens complexos são aqueles que carregam alguma dor crônica, num cenário desesperançoso.

Por isso, todas as figuras desta cidade-fantasma se comunicam em poucas palavras. Falam para dentro, às vezes em monossílabos. As raras frases completas correspondem a xingamentos. “Parece justo”, responde o protagonista, cada vez que é enxotado pelos habitantes da cidade. Simon Baker compõe um tipo enferrujado, de olhos semicerrados, as mãos sempre na cintura, o peso distribuído em apenas uma das pernas, como se fosse difícil se manter em pé. Ele transmite a aparência de cansaço, insatisfação, e mínima vontade de estar ali. Os moradores tampouco demonstram apreço pelo local pobre onde vivem.

Limbo busca discutir relações raciais sem oferecer o ponto de vista aos negros, nem aos aborígenes. O racismo jamais impregna as imagens para além da óbvia escolha do preto e branco para acentuar polaridades.

Este amargor generalizado e de pouco relevo resulta na impressão de uma obra que se pretende obscura, mas também profunda, árida, a respeito das relações humanas. O título Limbo remete de fato a um purgatório: Charlotte desapareceu, no entanto, são os outros que parecem mortos, esquecidos pelas instituições (não há igreja, escolas, prefeituras à vista), abandonados à própria sorte. Por isso, Travis investiga, mas não muito. Ele bate de porta em porta, faz perguntas. Ao receber respostas lacônicas, agradece e vai embora. As ações se arrastam, ao invés de se desenvolver. 

O cineasta ignora a possibilidade do suspense. Não há descobertas novas, indícios, pistas ignoradas no passado, tentativas de fuga, suborno, alteração de provas. Restam apenas conversas com o irmão e irmã de Charlotte, os filhos deles, e alguns suspeitos da época. Sen acredita que o material humano seja mais rico do que as reviravoltas de roteiro, razão pela qual reduz a jornada ao mínimo necessário para a crença de uma busca plausível. Travis está longe de um detetive exemplar, particularmente atento ou inteligente. Nem ele, nem os moradores, nem o filme acreditam de fato na busca pela menina. Este seria uma desculpa para a trama avançar.

O longa-metragem se desenvolve no avesso da urgência, privilegiando a atmosfera. Na verdade, a descoberta da impressionante locação parece ter sido o real motivo para o desejo de desenvolver um projeto ali, cabendo apenas criar alguma história para rechear as imagens. A região rochosa e montanhosa, repleta de imensas grutas onde se desenvolveram lojas e hotéis, constitui uma atração à parte. 

A fotografia em preto e branco valoriza o contraste do sol escaldante com as sombras profundas das grutas, enquanto os enquadramentos abrem o escopo ao máximo, para valorizar a paisagem em detrimento das pessoas. Os close-ups são raros, assim como os desfoques da profundidade de campo: o diretor prefere deixar tudo nítido e focado, até perder de vista, para que o espectador se sinta tão perdido e pequeno, em meio à natureza, quanto o detetive.

A exploração funciona, em partes. De fato, capta-se a aparência de isolamento social, necessária à trama. Os planos aéreos revelam a geografia particular e a impressão de que qualquer direção resultaria em destinos equivalentes. Em outras palavras, mesmo situados, os passantes se sentem perdidos. No entanto, os personagens interagem pouco com estes espaços decorativos, mais impressionantes do que úteis ou específicos ao caso. 

Jamais saberemos como é a vida de alguém ali dentro, dia após dia, para além de algumas poltronas situadas logo na entrada de uma casa, e do quarto solitário de Travis. É interessante que a câmera não se interesse em percorrer estas planícies, investigar suas particularidades, a noção de vizinhança. A julgar pelo roteiro, a cidade possui uma dúzia de cidadãos, no máximo, capazes de brotar em frente ao detetive sempre que a trama precisa disso. Um incômodo senso de conveniência e artificialidade rompe com o pretenso realismo.

Além disso, Limbo busca discutir relações raciais sem oferecer o ponto de vista aos negros, nem aos aborígenes. Durante as conversas, estes últimos reclamam da segregação, do tratamento diferenciado por parte de policiais. No entanto, tal racismo jamais impregna as imagens para além da óbvia escolha do preto e branco para acentuar polaridades, resultando somente num ensinamento superficial ao herói e ao espectador. Fala-se num problema estrutural profundo, porém, jamais representado enquanto tal.

Entretanto, o forasteiro aprende a lição: ao final do percurso, ele terá se tornado uma pessoa melhor. Este pai ausente serve de figura paterna simbólica a duas garotinhas e um garotinho, oferecendo lições de vida profundamente originais: “Escute a sua mãe, e não deixe de ir à escola”. Ele traz alguma paz aos familiares, acalma as tensões raciais, e resolve simbolicamente as dores daquelas pessoas que apenas precisavam, veja só, de alguém para escutar seus problemas. 

Nesta fábula sobre o apagamento de pessoas não-brancas, o heroísmo fica por conta de um homem branco, a quem se fornece a possibilidade de aprender e crescer. Apesar de toda a tentativa de fugir aos cânones norte-americanos (vide a conclusão da busca por Charlotte), não há nada mais hollywoodiano do que lamentar o genocídio de um povo sem lhe dar a voz, a partir do olhar de um homem branco caridoso que se dispõe a ajudar.

Limbo (2023)
4
Nota 4/10

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