The Sinner: Quarta temporada (2021)

O homem que queria morrer

título Original (ano)
The Sinner: Season 4 (2021)
país / gênero
EUA / Drama, Policial
duração
8 x 50 minutos
criador
Derek Simonds
elenco
Bill Pullman, Alice Kremelberg, Frances Fisher, Neal Huff, Cindy Cheung, Ronin Wong, Jessica Hecht, Michael Mosley, Joe Cobden, Jessica Marie Brown, David Huynh
visto em
Netflix

The Sinner (2017 – 2021) sempre possuiu algumas vantagens notáveis em relação a outras séries policiais. Em primeiro lugar, cada temporada se inicia com um crime presenciado pelo espectador e por outras testemunhas — ou seja, não restam dúvidas quanto ao que ocorreu de fato. Em seguida, a pessoa responsável pelo acontecimento é identificada e detida, o que retira as dúvidas quanto à identidade e à possibilidade de captura. 

Resta, no entanto, uma pergunta fundamental a desvendar ao longo da temporada: por que os criminosos executaram os atos bárbaros? Trata-se de figuras sem histórico de violência, nem motivação aparente para orquestrar tal plano. Pelo contrário, os gestos de agressão partem de impulsos irrefletidos, que surpreendem os próprios autores das mortes. Cabe ao detetive Harry Ambrose (Bill Pullman) enveredar por uma investigação essencialmente psicológica.

O protagonista também constitui uma figura particular. Ao invés de ser movido por um senso de retidão implacável, comum aos heróis justiceiros de séries procedurais (CSI e derivados), Harry segue obstinadamente em busca da verdade para compensar suas próprias falhas de percurso. Ele se envolve com cada assassino de maneira a romper com a deontologia profissional, e com qualquer limite ético. Em certa medida, torna-se amigo e figura paterna dos assassinos. O sujeito visa compreender e abraçar o mundo, partindo dos indivíduos mais problemáticos.

Pullman construiu esse personagem com uma carga crescente de cansaço e determinação. De fala vacilante, capaz de um confronto tão persistente quanto carinhoso, Harry adquiriu os olhos semicerrados, meio entorpecidos, marcados por insônia, pesadelos, medicamentos em excesso e outros distúrbios da saúde mental. O protagonista se aproxima destas figuras perigosas porque enxerga a si próprio em cada uma delas. A diferença essencial entre o bem e o mal, o correto e o errado, se dilui nesta estrutura onde ambos constituem lados da mesma moeda.

A quarta e última temporada representa o ápice deste dispositivo. Desta vez, a tendência intimista culmina num suicídio: o grande crime ocorre contra a própria vítima. Percy Muldoon (Alice Kremelberg) se joga de um penhasco durante a madrugada, tendo como testemunha o próprio investigador. No entanto, devido ao sono e ao escuro, ele contesta sua visão: teria visto realmente Percy se jogando? Por que o corpo desaparece? Como justificar as evidências de que a garota estaria viva, horas após o suposto gesto de desespero?

Um elemento muito interessante do roteiro reside na cruzada solitária do protagonista. Harry constitui o único interessado na resolução do mistério: a namorada Sonya Berzel (Jessica Hecht) tenta afastá-lo de uma nova aventura obsessiva; o clã dos Muldoon evita fornecer informações importantes e desmente a versão oficial do suicídio; os pescadores chineses muito próximos de Alice imploram para que a análise do caso pare o quanto antes; os policiais de Portland encerram o caso sob alegações questionáveis. Implora-se que Harry acate a tese do suicídio, ou do desaparecimento, o que for lhe mais conveniente. Mas que pare, por favor, de perscrutar a cidade.

Percy Muldoon lança a hipótese capaz de amarrar a série inteira e conferir um objetivo final ao protagonista: Harry estaria, inconscientemente, procurando a própria morte.

A moral se inverte: o quixotesco policial aposentado torna-se persona non grata para todos ao redor, a ponto de ser questionado a todo instante quanto às suas motivações. O que leva um homem aposentado, feliz com a namorada, a persistir nessa rota? A própria Percy Muldoon, na função de fantasma e comentarista, lança a melhor hipótese, capaz de amarrar a série inteira e conferir um objetivo final ao protagonista: ele estaria, inconscientemente, procurando a própria morte. Diante de ameaças, agressões e chantagens de todas as formas, entrega-se ao fardo de ir até o fim. Permanece na casa invadida, enfrenta sozinho sujeitos perigosos. Encontrando justificativa para a vida apenas no trabalho, ele provocaria uma maneira de morrer em serviço.

A verdade será encontrada, é claro, nos episódios finais, como convém ao suspense. O roteiro da quarta temporada dedica tempo considerável a plantar pistas falsas, ou pelo menos secundárias, aguardando para lançar os fatos somente quando lhe convém. A resposta ao episódio de Percy talvez seja pouco satisfatória, dependendo da introdução de personagens novos e de reviravoltas convenientes demais. Porém, tal desvio de foco confirma o fato que a resolução do crime não constitui uma finalidade em si.

Na hora de encerrar a bela história de mentes frágeis dos dois lados da lei, The Sinner se foca essencialmente em Harry, ao invés dos Muldoon, e chega à conclusão mais assustadora: o vilarejo inteiro possui, em maior ou menor medida, uma responsabilidade nos acontecimentos que afetaram a garota. Foi necessária a negligência de uma comunidade inteira para motivar tamanho gesto violência contra si própria. Coube a Harry, o pai simbólico dos criminosos, abraçar a figura fantasmática mais abandonada e carente entre todas que conheceu. E ele o faz em detrimento de si próprio.

Ao final, após a descoberta de inúmeras ilegalidades cometidas pelos moradores da região, Harry escuta a pergunta dolorosa de Meg Muldoon (Frances Fisher): “Você está feliz agora?”. Ora, o policial está devastado pelo processo árduo, assim como a família da vítima, e as outras envolvidas no processo. Esqueça a satisfação habitual dos indivíduos em descobrir a verdade: aqui, todos saem mais doloridos do que estavam a princípio, e uma série de crimes não será punida. A moral é vencida pelo pragmatismo: valeu a pena, em nome de uma revelação policial, provocar a ruína de dezenas de indivíduos envolvidos?

A série embala o triste cumprimento da lei numa atmosfera azulada, fria, melancólica. Existem apenas dias nublados e repletos de vento neste local, além de ruas vazias, igrejas silenciosas, comércios de pouca atividade. Paira uma sensação de morte generalizada, como se os residentes sobrevivessem ao invés de viverem de fato. Onde Sonya encontra uma bela paisagem bucólica para seus quadros, Harry descobre um espelho para a depressão evidente e a sensação de fim — do relacionamento, da carreira e da vida.

Teria sido fácil promover uma conclusão chocante. No entanto, os criadores driblam esta armadilha ao promoverem um olhar nostálgico, espécie de constatação do fracasso generalizado de um estado de lei, punitivo e vingativo, tão tipicamente norte-americano. É preciso coragem para investir no tempo contemplativo, nas tensões dilatadas, nas explicações suspensas e em aberto. O projeto se encerra no avesso do espetáculo, sem soluções fáceis. As temporadas sempre ofereceram ao crime um olhar humanizado, repleto de compaixão e de uma estranha capacidade de identificação: o que nos separa daqueles indivíduos tão delicados e arrependidos? Existe uma postura moral e ideológica bastante complexa na maneira como The Sinner retira do homicídio sua atmosfera acusativa e o senso de superioridade.

The Sinner: Quarta temporada (2021)
8
Nota 8/10

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