Amigo Secreto (2022)

"Nós estamos do lado certo da História"

título original (ano)
Amigo Secreto (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
130 minutos
direção
Maria Augusta Ramos
com
Carla Jiménez, Regiane Oliveira, Marina Rossi, Leandro Demori
visto em
Cinemas

O anúncio de filmes a respeito do golpe de 2016, da operação Lava Jato e da pandemia de Covid-19 provoca certo receio. Afinal, estes temas foram martelados tanto na mídia sensacionalista quanto nas redes sociais; na opinião popular e nas discussões entre amigos; nos panelaços das sacadas e nas manifestações das ruas. O que os filmes poderiam nos ensinar que qualquer brasileiro já não saiba, da maneira mais traumática possível?

Diversos projetos se contentam com um lembrete óbvio de que aquilo, de fato, aconteceu. O cinema nacional teve pelo menos quatro documentários recentes que pareciam dialogar com um público futuro em busca de informações básicas a respeito do ocorrido nesta época turbulenta. Aos cinéfilos de uma geração futura, a recordação fatual e linear trará alguma forma de conhecimento. No entanto, que valor teria, no presente, este cinema em fórmula de cápsula do tempo?

Neste contexto, entra em cena Maria Augusta Ramos. Autora de traços estabelecidos, ela preserva e refina sua linguagem documental filme após filme. Esqueça as narrações chorosas e pessoais; os extensos letreiros explicativos; os gritos de esperança e clamores de luta ao final da sessão. Em especial, não espere por especialistas oferecendo pérolas de conhecimento diante de fartas bibliotecas, nem uma linguagem modesta porque urgente, colocando o tema acima da estética. Este é um cinema rigorosamente formalista.

A cineasta opera na chave da contextualização, ao invés da constatação. Sim, todos sabemos (ou deveríamos saber) que houve o golpe e a Lava Jato. Lula foi preso, Moro se tornou superministro, depois abandonou o barco do bolsonarismo. Por isso, o discurso dá um passo além. Amigo Secreto acredita que episódios que ocupam o imaginário popular através de memes, frases de efeito e evocações distorcidas precisam ser recolocados em suas devidas situações. A compreensão necessita de tempo.

O resultado surpreende ao oferecer calma e contemplação a um tema capaz de despertar amores e ódios profundos.

Entram em cena longos trechos de arquivo, com uma edição discreta, intervindo o mínimo possível nos diálogos e nos ritmos originais. O famoso depoimento de Lula diante de Sérgio Moro, a respeito do triplex do Guarujá, impressiona e incomoda pela evidente falta de argumentos do juiz diante do investigado. A célebre reunião de Jair Bolsonaro com seus ministros, quando se pede para “passar a boiada” e mudar a liderança da polícia no intuito de preservar os filhos do presidente, retorna com seus tempos, silêncios, constrangimentos. Quem se lembrava do encontro inteiro?

Ramos acredita na duração, nos processos. A partir destes dois trechos conhecidos, em especial, oferece uma série de imagens novas, ou pelo menos mais completas, captadas ao longo de anos (de 2017 até hoje). O foco se encontra no trabalho de jornalistas do El País e do The Intercept para desmascarar a investigação seletiva, cujo alvo se encontrava obviamente no PT e na esquerda brasileira, interrompendo-se assim que outros partidos eram mencionados nos acordos de delação premiada. Não se lutava pelo fim da corrupção, mas por seu monopólio.

O resultado surpreende ao oferecer calma e contemplação a um tema capaz de despertar amores e ódios profundos. Na sessão de imprensa, os críticos riam, se contorciam de indignação, bufavam após alguma fala sarcástica. (Um alívio: não estamos totalmente anestesiados). Há poucas cenas no total, e poucos personagens. No entanto, as sequências são longas, seja aquelas com foco em reuniões de pauta entre jornalistas ou nos votos de magistrados do STF.

O olhar da câmera jamais nos diz para amar uma pessoa, nem odiar a outra. A relação epidérmica com o ocorrido é fácil demais, e passa longe das ambições reflexivas da diretora. Quem defende um lado, ou o outro, dificilmente mudará de ideia após a sessão: esta não constitui uma tentativa de conversão, nem de persuasão. Assim como havia feito com Dilma Rousseff em O Processo (2018), quando elegeu um grupo específico de senadores para acompanhar os trâmites (i)legais; agora seleciona quatro jornalistas e cola sua câmera à rotina dos mesmos.

Deste modo, o espectador presencia as discussões e palavras digitadas nos computadores de Carla Jiménez, Regiane Oliveira, Marina Rossi e Leandro Demori. Assistimos aos deslocamentos de carro, às entrevistas com executivos da Odebrecht, ao trabalho noturno, em suas casas, junto das esposas, maridos e dos bebês. Isso vai além de uma atividade profissional, sugere a imagem: a investigação da Lava Jato pela mídia alternativa invade a vida destas pessoas, monopoliza suas horas e seus esforços. O político sempre invade o particular; o público sempre reflete no privado.

Num Brasil tomado por gritos, notícias falsas e falta de empatia, Amigo Secreto demonstra a capacidade de ouvir. Com frequência, testemunhamos personagens vendo outros personagens, ou assistindo a vídeos. Rostos em silêncio, esperando o voto dos juízes do Supremo, ou as expressões sérias diante de uma delação nos convidam a escutar também, calando-nos por um instante. O cinema político costuma convidar à ação, à imersão. Este documentário, em contrapartida, nos afasta até termos distância suficiente para a análise. 

Por isso, o elemento de maior surpresa e reconforto no filme se encontra na ausência de furor. Ramos jamais ridiculariza ou explicita os acontecimentos — seu discurso progressista nasce da aproximação entre imagens e ideias, das relações de causa e consequência. Em última instância, revela um procedimento dialético de teses, antíteses e sínteses. Moro pressionando Lula para uma condenação + Lula saindo da prisão e encontrando uma multidão eufórica = Lula em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais de maio de 2022, enquanto Moro abandona a corrida. 

A edição, silenciosa e precisa, transmite o significado necessário — a linguagem confia na inteligência de seu público. Há pequenos acenos, aqui e acolá: uma placa de “Atenção: novo sentido” virada à esquerda, o rosto de uma jovem negra como primeira personagem em cena. Amigo Secreto corre o risco de idealizar seus jornalistas, sobretudo Demori no primeiro terço da narrativa. No entanto, a impressão de dissipa. A fotografia segue neutra, com suas cores pastéis, luzes naturais, fundos discretamente desfocados para destacarem os personagens. “Nós estamos do lado certo da História”, declara um personagem. O projeto se priva de uma fala tão assertiva, porém parece apoiá-la via edição. Aqui, a sabedoria se encontra em elaborar boas perguntas, ao invés de oferecer respostas definitivas.

Amigo Secreto (2022)
8
Nota 8/10

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