O longa-metragem parte de intenções muito nobres. O autor acompanha as dificuldades de uma jovem de classe média-baixa, sem qualquer apoio dos familiares, sobrevivendo diariamente à violência urbana. Além disso, torna-se mãe simbólica do irmão mais novo, um rapaz assumidamente gay, cuja orientação sexual provoca agressões suplementares ao lar fragilizado.
O retrato se mostra avesso a qualquer senso de espetáculo ou fetiche da miséria. O diretor Marcus Faustini oferece um recorte da vida cotidiana, como se os dias representados em tela tivessem sido escolhidos ao acaso. Nenhuma transformação definitiva ocorre na vida de Ana Paula (Priscila Lima) e de Diego (Gustavo Luz). As dores se limitam a pequenas tristezas; as alegrias se convertem em recompensas módicas. A obra se calibra no meio-termo entre a euforia e a depressão. Procura-se, voluntariamente, um tom mínimo, modesto.
Os recursos estéticos e artísticos são calibrados neste cinza-médio. Priscila Lima sustenta uma permanente aparência de exaustão, além de uma incapacidade de se surpreender com os golpes da rotina. As ameaças a ela e ao irmão são recebidas como mero obstáculo suplementar a colocar na fila, junto dos dilemas financeiros e a busca por trabalho. Chora-se pouco, ri-se menos ainda. As amigas próximas reforçam a atmosfera melancólica do conjunto, cuja interrupção provém apenas da atuação afetada de Gustavo Luz, em registro performático, falas declamadas, olhar vidrado, sem piscar. O irmão mais novo extrai deste contexto suburbano uma ferocidade que certamente não contagia a heroína.
A obra se apequena não pelo minimalismo narrativo, mas pela maneira como as subjetividades são filmadas, sonorizadas e editadas.
Devido à escolha de privar Ana Paula de reviravoltas, o roteiro reserva aos coadjuvantes os dilemas centrais, cabendo à jovem reagir às transformações alheias. A homofobia será vista pelo olhar daquela que não a sofre, assim como o surgimento das milícias no bairro serão resolvidas essencialmente pelo companheiro (Vinícius Oliveira), e o racismo atinge um casal de amigas lésbicas, onde uma das namoradas é negra. A entregadora de panfletos e passeadora de cães precisa gerenciar os afetos alheios, acalmar os múltiplos incêndios ao redor. Mas quem cuidará dos cuidadores?
A fotografia e montagem seguem o torpor da protagonista. Este Rio de Janeiro se caracteriza por dias nublados, casas vazias, poucos encontros com amigos. A câmera se foca ao máximo nos rostos, desfocando o fundo do quadro para reforçar a atenção nos diálogos na expressividade do elenco. A imagem jamais chama atenção excessiva a si mesma, assim como a direção dispensa vastos movimentos de câmera e outras construções de risco. Privilegia-se uma cartilha convencional, acadêmica, com o foco nos rostos e nos conflitos movidos essencialmente por embates verbais.
Infelizmente, alguns aspectos prejudicam o resultado. O maior deles, sem dúvida, provém do som. Os diálogos são claríssimos, em alto volume, despertando a impressão de que as falas foram dubladas posteriormente pelo elenco. Decorre desta opção uma curiosa artificialidade, visto que os sons ambientes teriam sido fundamentais a uma obra urbana, apoiada no realismo social. Aqui, Ana Paula e Diego transitam por ruas desertas, frequentam festas silenciosas, bebem em bares sem clientes, entregam panfletos numa grande rua comercial onde mal se escutam as falas ao redor.
A confluência entre a obsessão por close-ups e o foco total nas falas desperta uma aparência televisiva. A obra se apequena não pelo minimalismo narrativo, mas pela maneira como estas subjetividades são filmadas, sonorizadas e editadas. Alguns acréscimos em finalização tampouco ajudam: cada aparição do adversário miliciano (Anderson Barnabé) é acompanhada de uma trilha sonora assustadora, como se Michael Myers batesse à porta da protagonista. Antes mesmo de o rapaz representar qualquer risco, o filme avisa o espectador que uma cena de tensão está chegando. Falta confiar na capacidade do espectador em compreender a óbvia tensão da mise en scène, sem a necessidade de explicá-la.
Além disso, alguns diálogos repetem aquilo que as ações demonstram sozinhas. Depois de Ana comprar bolos três ou quatro vezes com o mesmo vendedor ambulante, este afirma: “Você vem sempre comprar aqui comigo”. Adiante, ela explica ao irmão o racismo sofrido pelos pais na infância, assim como as transformações geográficas e políticas da periferia carioca. O garoto ainda não sabia disso? O casal interracial e lésbico menciona a violência suplementar sofrida pela jovem negra em relação à namorada branca. Teria sido muito mais potente representar tais dinâmicas, ao invés de somente citá-las em falas.
Sob provável pretexto de não espetacularizar as dificuldades da vida no subúrbio, o projeto cria interações e dilemas mornos. Estas pessoas que economizam para o bolo do café da manhã têm condições de fazer terapia, aula de inglês, curso de teatro. A opressão homofóbica de um bairro inteiro se interrompe com a eliminação de uma única peça — um criminoso perigosíssimo que aceita sem reagir ao seu destino trágico. O namorado vem e vai quando convém à trama, sem que o roteiro analise em profundidade os motivos que o levaram partir do bairro, e os sentimentos nutridos por Ana Paula.
Logo, paira uma impressão de inconsequência, ou de facilidade na luta contra opressões sistêmicas. Constata-se de maneira bastante eficaz a ampla gama de problemas existentes, apenas para estimar que sempre foram assim, que se driblam aos poucos, na medida do possível. Faustini foge ao otimismo idealizado e às soluções mágicas, porém corre o risco de cair no outro oposto — no caso, em certa apatia, e mesmo um teor possivelmente conformista diante da violência grave. As coisas foram assim mesmo nestes bairros, então… fazer o quê?
É curiosa que Ana chegue às telas junto a outras obras brasileiras que retratam a homofobia de adolescentes pela perspectiva dos familiares heterossexuais, preocupados com o futuro destes personagens numa sociedade homofóbica. Pedágio, de Carolina Markowicz, e Sou Amor, de Cris Azzi e André Amparo, partem de dilema semelhante: o que fazer com meu filho/irmão assumidamente gay? Após a “cura gay” de Pedágio, e o exílio forçado no caso de Sou Amor, os jovens de Ana simplesmente seguem em frente, torcendo pelo dia em que a situação será melhor.