Animal (2023)

O corpo interminável

título original (ano)
Animal (2023)
país
Grécia, Áustria, Romênia, Chipre, Bulgária
gênero
Drama
duração
116 minutos
direção
Sofia Exarchou
elenco
Dimitra Vlagopoulou, Flomaria Papadaki, Ahilleas Hariskos, Voodoo Jürgens
visto em
Festival de Locarno 2023

Kalia (Dimitra Vlagopoulou) e Eva (Flomaria Papadaki) trabalham como animadoras num grande hotel turístico das ilhas gregas. “Você sabe o que isso significa, ‘animadora’?”, a primeira pergunta à segunda, recém-chegada, como se implicasse a existência de um significado oculto. Esta responde que sim. Poucos dias mais tarde, a jovem polonesa terá aprendido as coreografias necessárias para se apresentar com o grupo à beira da piscina, além dos movimentos para o show de fantasias à noite, no restaurante. 

Ela também apresenta danças eróticas na boate da cidade, fora do horário de trabalho. As duas pulam, bebem, fazem sexo, e depois andam quilômetros a pé, durante a madrugada, de volta ao hotel. No dia seguinte, pela manhã, estão acordadas, ensaiando, preparando-se para a rotina dos hóspedes. A diretora Sofia Exarchou se dedica a esta prática que consiste em estar, 24h por dia, disponível à performance e ao desempenho. As duas, junto a uma dezena de colegas animadores, precisam estar prontas, dispostas, sorridentes, ágeis, sedutoras, a qualquer hora. 

Aqui, o domínio público se mistura ao privado: elas dormem no local de trabalho, tornam-se amigas íntimas dos colegas do hotel. Bebem os brindes do frigobar escondidas, e mantêm relações sexuais com os dançarinos dos quartos ao lado. A vida se torna um parêntese onde todos os sentimentos, afetos e desafetos circulam pelos palcos, coxias, acomodações. Os empregados sazonais se tornam amigos, amantes, familiares, vizinhos, colegas de empresas. Suprem as necessidades alheias, e as próprias, ali, como podem, com os elementos e subjetividades disponíveis.

O longa-metragem apresenta uma euforia triste, uma vibração desesperada. Paira a busca pelo momento que as duas personagens quebrarão, sem ser percebidas pelos patrões ausentes, nem pelos hóspedes que ignoram seus nomes.

Animal mergulha neste microcosmo social, explorando as óbvias limitações deste conceito de “internato” enquanto comunidade pretensamente autônoma. Não, elas não possuem intimidade, nem possibilidade de fuga ou lazer nesta prisão colorida e abertamente kitsch, incluindo apresentações de estátuas dançantes e mulheres de seios reforçados com enchimento, para encantar os viajantes. A cultura grega se vulgariza, ridiculariza: “Este é o Louvre dos pobres”, sintetizam.

Kalia e Eva veem e são vistas o tempo inteiro, precisando atuar como personagens de si próprias. Pouco importa que estejam cansadas, tristes, sentindo-se mal: precisam rebolar, cantar no karaokê, incentivar o grupo de idosos a pularem na piscina. E quem cuidará dos cuidadores? Quem animará as animadoras? Para além de questões trabalhistas, o roteiro dedica-se a um olhar obsessivo, dia após dia, noite após noites, às atividades da trupe. 

Esqueça a abordagem sociológica ampla de The White Lotus, que buscava equilibrar os funcionários, gerentes, clientes e amigos. Para a diretora, importam apenas os animadores. O espectador não saberá o nome de nenhum hóspede, embora muitos passem pela cama de Kalia, nem mesmo dos rapazes com quem ela se encontra nos bares noturnos — onde finge ser uma turista solitária em busca de amigos, mesmo que apenas por uma noite. 

A mulher extremamente experiente, prestando-se há décadas à posição objetificante, retorna todos os anos ao hotel, sem saber ao certo porque o faz. Ela é uma das únicas a aceitar um ritmo tão intenso, e de pouco reconhecimento. “Eu sou uma jukebox”, resume a um amante. No restante do grupo, a rotatividade se torna comum. Logo, o filme se foca nas mulheres idênticas e opostas: a veterana e a novata; a mulher-máquina, melhor dançarina, melhor cantora e sempre disposta ao sexo, e a colega tímida, que ainda precisa aprender a mexer os quadris; aquela que parece nunca ir embora, e a outra, com olhar perdido de quem desejaria fugir a qualquer instante.

A direção opera na chave da gradação. Instaura uma câmera crua, onipresente, para captar as apresentações públicas, mas também o momento em que lavam a vagina após um encontro. Flagram os testes de maquiagem, as brincadeiras entre amigos, mas também um estupro e a nudez frontal dos homens. A curiosidade da exaustão move também o pressuposto estético e psicológico do longa-metragem. Ela dança mais, e mais, e mais, e mais. Até quando conseguirá dançar?

Os conflitos se acrescentam uns aos outros, de maneira sutil, silenciosa. Um colega começa a se tornar caso recorrente na cama de Kalia. Eva praticamente adota a filha pequena desta última, perdida entre os adultos. Uma queda na boate produz uma ferida na perna de Kalia, que nunca admite as dores a ninguém, e oculta o ocorrido. O corte aumenta, se infecta, mas ela continua vestindo as calças apertadas e dançando com igual desenvoltura. 

Em consequência, o longa-metragem apresenta uma euforia triste, uma vibração desesperada. Os sorrisos estão presentes em cada cena, assim como gestos genuínos de afeto. No entanto, paira a busca pelo momento que estas pessoas quebrarão, sem ser percebidas pelos patrões ausentes, nem pelos hóspedes que ignoram seus nomes. Trata-se de figuras superexpostas e invisíveis ao mesmo tempo, ou profundamente performantes e anestesiadas como zumbis. 

A diretora capta enormes contradições de classe, gênero, origem e sexualidade ao se debruçar sobre o caso específico de duas magníficas personagens trabalhadas com riqueza de detalhes pela autora e pelas atrizes principais. Os olhares de Flomaria Papadaki, os sorrisos e gestos voluntariosos de Dimitra Vlagopoulou atingem um nível de excelência (dramática, cênica, narrativa) que poucos artistas conseguem expressar numa carreira inteira.

Críticos costumam dizer que alguns filmes produzem “mágica”, quando se percebe uma consonância ideal entre todas as funções artísticas (fotografia, direção de arte, montagem, roteiro, etc.) sem que uma chame mais atenção do que a outra, nem represente mera vaidade da direção. Animal capta este instante de graça de uma cineasta de talento impressionante. Seu esforço visceral certamente esbarra em cenas que alguns considerarão excessivas, exploradoras, ou então em decisões enigmáticas — por que praticamente ignorar Eva no terço final, resgatando-a apenas na cena derradeira? 

Mesmo assim, revelam um cinema que ousa ir além do consensual, do bom gosto polido de muitos “filmes de festival”. As cenas do amante caindo na terra, levantando-se, caindo de novo e fazendo sexo, todo esfolado pelas pedras, revelam uma cineasta de coragem em seus procedimentos, no tempo da ação, na mise en scène, nos atores. Kalia e Eva não são as únicas a se levarem ao limite de suas capacidades.

Exarchou também propõe um cinema do real “feio”, sem embelezamentos nem atenuações. Trata-se da lógica de filmar a exploração trabalhista e de individualidades através de uma câmera parceira, mas sutil, pouco intervencionista. A equipe inteira parece dançar, cantar, e se cansar, na mesma intensidade de suas atrizes. Atinge-se um cinema da exaustão, no melhor sentido de chegar ao fundo de sua iniciativa.

Animal (2023)
9
Nota 9/10

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