Dois anos após o falecimento da artista Anna Mariani, chega aos cinemas o documentário dedicado à sua trajetória enquanto fotógrafa. O diretor Alberto Renault evita o caminho da autobiografia: conhecemos pouquíssimo da vida afetiva, pessoal, familiar. Não há uma imagem sequer do rosto da personagem principal. Aos criadores, interessa unicamente a produção desta mulher em dois projetos particulares: Pinturas e Platibandas (1987) e Paisagens, Impressões: O Semi-Árido Brasileiro (1992).
Algumas escolhas se mostram bastante positivas. Diversos textos escritos pela protagonista são entregues a atores e músicos, para executarem a função de narradores em off. Assim, Mariani se converte numa presença ausente: todas as fotografias e descrições evocam sua trajetória, embora a própria voz e seu retrato estejam sublimados.
Entretanto, é curiosa a escolha por narradores dotados de timbres muito característicos: Regina Casé, Caetano Veloso, Tom Zé, João Miguel. Enquanto leem, enxergamos mentalmente seus rostos facilmente reconhecíveis, ao invés de Mariani ou do escritor Euclides da Cunha. Mesmo assim, possuem a empostação necessária a falas às vezes um tanto áridas.
O cineasta também propõe, em determinados momentos, um diálogo entre a linguagem do cinema e aquela da fotografia. Ele procura enquadrar e observar as fachadas das casas nordestinas da mesma maneira que sua personagem o fazia, o que implica na compreensão do trabalho de Mariani enquanto estética, para além de temática. Renault chega a explicar, em sua própria voz, que procurou as casas registradas pela artista décadas atrás, sem muito sucesso. Pena que o procedimento não vá adiante, e nem a transformação urbana, a modernização e a falta de preservação histórica se convertam num tópico realmente aprofundado.
Resta pouco trabalho ao espectador, colocado na posição passiva de aluno iniciante em uma masterclass. Toda imagem chega aos nossos olhos devidamente explicada, justificada em intenções e narrativas.
No entanto, outros elementos despertam incômodo, a começar pelas demais captações contemporâneas do documentário. Quando não está observando casas, a câmera se volta a uma infinidade de estradas e paisagens à beira de rodovias, utilizadas quase invariavelmente enquanto transição entre cenas. Ora, trata-se de captações genéricas, intercambiáveis, muito distantes do rigor de olhar e enquadramento de Mariani.
As muitas dezenas de fragmentos poderiam ter sido captadas em qualquer Estado, em décadas distintas, conectando quaisquer cidades a quaisquer outras. Para um longa-metragem que lida com as especificidades de uma cultura e uma região, as transições se mostram pouco inspiradas. Além disso, beiram o saudosismo e a romantização do sertão, algo muito distante no olhar da fotógrafa. Os trechos de natureza ao pôr do sol despertam mais estranhamento do que admiração.
Além disso, conforme evocado pelo subtítulo, esta obra se concentra em “anotações fotográficas” a respeito dos livros-chave mencionados acima. Isso significa que as fotos são acompanhadas de uma explicação a respeito do local onde foram tiradas, a iluminação escolhida, a ordem em que foram publicadas, o motivo pela ausência de rostos humanos nos stills. Conhecemos o contexto político em que surgiram as platibandas, seu desenvolvimento pelo sertão, as formas mais delicadas ou ostensivas de desenhos e pinturas.
Assim, resta pouco trabalho intelectual ao espectador, colocado na posição passiva de aluno iniciante em uma masterclass. Toda imagem chega aos nossos olhos devidamente explicada, contextualizada, esmiuçada, justificada em intenções e narrativas. Nunca ganhamos a oportunidade de apenas observar tais fachadas e tirar nossas conclusões a respeito do processo, ou ter um maravilhamento estético pessoal. Renault não expõe apenas as fotografias de Mariani, mas a interpretação correta das fotografias de Mariani. Cabe ao interlocutor se calar e ouvir, apenas.
Pelo menos, o detalhamento é completo, rico, repleto de pontuações históricas, sociais, culturais. Explica-se a “arquitetura que não é arquitetura”, a “fotografia que não é fotografia”. As pinturas coloridas e rebuscadas representariam uma “tentativa de rejeitar o ‘nada’ da miséria”, uma “revolta e aspiração à dignidade”. Grandes teóricos são evocados para refletir a paisagem das cidades, e suas digressões se mostram fecundas. Quem sabe possamos levar tais ensinamentos para a análise de imagens futuras, em outros filmes.
A este aspecto, Anna Mariani: Anotações Fotográficas desperta a impressão frustrante de se arrastar muito além do material disponível, no intuito de atingir os 70 minutos oficiais para um longa-metragem. A atenção voltada aos dois livros transparece forte desequilíbrio: Pinturas e Platibandas ocupa dois terços do discurso, talvez mais. Já Paisagens, Impressões: O Semi-Árido Brasileiro (1992) surge como um pensamento posterior, um adendo no terço final, dotado de reflexões menos interessantes.
Para complicar a situação, o desfecho exibe um currículo de Anna Mariani, espécie de página Wikipédia copiada-e-colada à tela preta do cinema. Descobrimos todos os seus livros, seus textos, suas exposições, com data e local. O recurso simplório não tem lugar de existir numa obra que evitava, até então, o tom tão protocolar. Neste segmento, os autores se assemelham aos produtores que inscrevem um novo projeto de Anna Mariani em algum edital, fornecendo aos avaliadores um portfólio audiovisual da artista.
Em paralelo, os letreiros finais são intercalados com trechos que aparentemente foram dispensados na mesa de edição, mas devem ter agradado aos autores, de modo que retornam, de maneira aleatória, entre os créditos — ajudando a alongar a duração do filme. As imagens se repetem, os trechos se articulam mal neste pout-pourri de tudo o que vimos até então. O documentário apresenta grave dificuldade em se concluir e extrair conclusões de sua aula. Mesmo assim, terá introduzido, com pedagogia satisfatória, um resumo das obras da fotógrafa estudada.