Aos Nossos Filhos (2019)

A dificuldade de lidar com a diferença

título original
Aos Nossos Filhos (2019)
país
Brasil, Portugal
gênero
Drama
duração
107 minutos
direção
Maria de Medeiros
elenco
Marieta Severo, Laura Castro, Marta Nóbrega, José de Abreu, Cláudio Lins, Antônio Pitanga, Denise Crispim, Aldri Anunciação, Ricardo Pereira
visto em
Cinemas

Inúmeros temas se misturam no drama Aos Nossos Filhos (2019). Discute-se a homossexualidade, a soropositividade, a maternidade, a herança nefasta da ditadura militar, a violência policial nas comunidades do Rio de Janeiro, a adoção, o reconhecimento profissional das mulheres, a importância histórica do jornalismo investigativo, as contradições políticas da esquerda e da direita brasileiras, entre outros tópicos. 

Tamanha carga de debates poderia resultar num panfleto explicativo, no qual os personagens serviriam de mera bandeira para suas discussões. Felizmente, o primeiro mérito do longa-metragem se encontra na naturalidade com que estas questões se cruzam no interior da trama. Nenhum problema se interrompe para a chega da próximo: os dilemas ocorrem em paralelo, enquanto manifestações orgânicas na vida de cinco ou seis protagonistas.

Por esta razão, estes adultos manifestam pesar, mas não surpresa diante dos acontecimentos ao redor. A diretora Maria de Medeiros, partindo da peça de Laura Castro, jamais grita a gravidade dos fatos ao espectador: quando um tiroteio ocorre na ONG Positivida, liderada por Vera (Marieta Severo), os frequentadores do imóvel apenas se isolam e esperam o perigo passar. Enquanto isso, a mulher responde a um telefonema da filha, e pensa em outros compromissos pessoais. Os afazeres cotidianos não se interrompem para que estes personagens vivam por completo suas dores mais íntimas.

Ao mesmo tempo, paira uma atmosfera de leveza, de caráter cotidiano, que ajuda a atenuar o peso do longa-metragem e aproximá-lo do público. As interações privilegiam pequenas conversas na cama, almoços e jantares banais, idas ao banheiro, o medo de uma barata pelo chão, um mergulho na piscina, uma caminhada pelas ruas de um morro carioca. Há tempo, respiro, contemplação, algo quase impensável para uma obra com reflexões de tamanha gravidade. 

É evidente que a cineasta, os atores e técnicos trabalham com um projeto amadurecido, bem pensado, pouco afeito a elaborações de última hora.

O equilíbrio de tom provém da abordagem madura do roteiro. É evidente que a cineasta, os atores e técnicos trabalham com um projeto amadurecido, bem pensado, pouco afeito a elaborações de última hora. A relação de conforto com o texto resulta tanto no aspecto de segurança e desenvolvimento dos conflitos quanto na carga limitada de ousadia. Há poucas tomadas de risco ao longo desta experiência, tanto cinematográfica quanto narrativamente. Trata-se de um cinema calmo, posado, cerebral. Assim, a sentimentalidade se restringe.

Em consequência, a mise en scène pode soar engessada até demais. Medeiros opera com composições simétricas, planos e contraplanos durante uma conversa entre amigos, uma câmera discreta acompanhando crianças que sobem e descem a escada durante a batida policial. Mesmo dentro do apartamento de Vera, onde a priori haveria fartas possibilidades de experimentação, o olhar segue fixo, à altura dos olhos, colocando o corpo e o teor humano no centro do foco.

A direção de fotografia prioriza luzes naturais, mesmo que tenha à disposição algumas lâmpadas fracas do ambiente interno, enquanto a montagem interrompe as cenas no instante exato em que se profere alguma frase de efeito. Os saltos temporais são discretos, mas não invisíveis, nem particularmente refinados. Nota-se uma forma de cinema tão correta quanto acadêmica, cartesiana. Até as metáforas (jacarés no apartamento, a infestação de baratas) se revestem de um naturalismo anticlimático.

Ao menos, o humanismo do texto compensa a timidez da direção. O roteiro se prova capaz de escutar diversos lados do espectro político, destacando as incoerências de cada setor ideológico e as diferenças geracionais de compreensão do mundo. Há inúmeras esquerdas no interior desta jornada, todas elas presas aos seus próprios preconceitos. Qualquer forma de maniqueísmo ou simplificação dos debates se afasta da aventura íntima: o espectador é convidado a compreender os posicionamentos de todas as figuras envolvidas, sem necessariamente tomar partido por uma ou outra.

As atuações contribuem para o sucesso da empreitada, no sentido de evitarem qualquer histrionismo. Existe uma verdadeira noção de conjunto, com todos colaborado para o sucesso do projeto sem buscar atrair atenção a si mesmos. Esqueça as “cenas de prêmio”, as catarses espetaculares, as lições de moral do pecador arrependido. O conjunto se equilibra de maneira preciosa, promovendo belos jogos cênicos através do estilo mais expansivo de Laura Castro e daquela mais internalizado de Marieta Severo.

Em consequência, nem as frases de efeito, nem os diálogos escritos demais prejudicam de maneira definitiva a fruição do belo drama. Para cada inserção explicativa (“A gente está quase comemorando bodas de ouro, temos uma filha fantástica”), há conversas bem construídas, a exemplo das interações com Caíque; para cada sequência protocolar (o frágil flashback na prisão), há delicados respiros do casal formado por dois homens brincando com uma criança, ou as transições ao som de canções pontuais e bem escolhidas.

Aos Nossos Filhos capta a impressão de um Brasil que se esforça, porém sem saber se há razões práticas para tamanho esforço — em outras palavras, um país preso entre a crença no futuro e a dureza do presente. Medeiros orquestra uma obra sobre a difícil arte de escutar o outro, seja ele nossa mãe, filha, um jornalista ou ex-marido. Diferentes classes, etnias, gêneros e gerações brasileiras se cruzam neste núcleo familiar. Não será difícil reconhecer a si mesmo, ou aos próximos, nestas figuras muito falhas, porém tentando acertar.

Aos Nossos Filhos (2019)
7
Nota 7/10

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