Um grupo desfavorecido luta para ser contemplado pelos planos do novo governo antidemocrático. Sofrendo com a fome e a miséria, estes indivíduos marginalizados precisam combater a ganância do líder autoritário, que se une a outros magnatas no intuito de concentrar poder e recursos. Este poderia ser o ponto de partida de um drama político, exceto pelo fato que os personagens são ratos, leões, elefantes e baratas, construídos com os traços lúdicos do cinema de animação.
Arca de Noé certamente não constitui o único filme para crianças a lidar com questões de organização social. Os maiores e melhores filmes animados também visam despertar um senso crítico nos pequenos, mediante ferramentas da fantasia — vide Wall-E, Zootopia e O Gigante de Ferro, para citar alguns gigantes norte-americanos. A novidade está na origem brasileira do projeto, além da tentativa de inserir tais discussões tanto na lenda bíblica quanto nas canções baseadas em poemas de Vinícius de Moraes.
Por isso, a narrativa abre e fecha com A Casa, canção simples (e politicamente instigante), entoada por algumas das maiores vozes do cinema nacional. O elenco traz atores confirmados como Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Lázaro Ramos, Bruno Gagliasso, Alice Braga, Ingrid Guimarães, Heloísa Perissé, Eduardo Sterblitch, Seu Jorge, Gregório Duvivier, Julio Andrade e Luis Miranda, além dos cantores Chico César, Céu, Adriana Calcanhotto e BaianaSystem. Devido às proporções da iniciativa e à qualidade da produção, o longa-metragem impressiona de imediato.
Arca de Noé representa a tentativa, tão ambiciosa quanto utópica, de promover uma obra agradável à direita religiosa e à esquerda progressista.
Destaca-se igualmente a imersão numa cultura tipicamente brasileira. Chega a ser um alívio nos deparar com diálogos pensados para referências nacionais, não adaptados nem traduzidos de um referencial estadunidense. “Sem mimimi”, reclama um; “Dá um like”, pede outro; venha para a minha “área VIP”, convida o terceiro. “Ninguém solta a pata de ninguém”, gritam os bichos, durante o colapso da arca. “Isso é puro ratismo. Você não tem lugar de furo”, questionam os tripulantes. É evidente que o roteiro foi pensado para crianças e adultos, adequando-se às pautas sociais e mergulhando com destreza na atual polarização política.
Isso implica na tentativa, tão ambiciosa quanto utópica, de promover uma obra agradável à direita religiosa e à esquerda progressista. Os personagens acatam de imediato as ordens de Deus, que solicita a construção da imensa arca capaz de transportar os animais, “um de cada sexo”. Este Deus é divertido, fala em gírias e critica os áudios de cinco minutos no WhatsApp — um dos motivos alegados para inundar o planeta. No interior da embarcação, os pedidos de atenção dirigem-se a “amigos, amigas e amigues”, enquanto alguns animais representam travestis. A personagem humana principal questiona Noé, seu pai, a respeito dos animais LGBTQIA+, escutando como resposta (educadamente) que se cale e termine a refeição.
A tentativa obtém sucesso, até certo ponto. Parte de uma fábula essencialmente binária (a formação de pares formados exclusivamente por um homem e uma mulher), sem tentar subverter esta fórmula (que tal dois ratinhos homens, ou animais não-binários?). Ela diminui o caráter doutrinário da fábula bíblica, o que acaba levando à decisão um tanto arbitrária de matar diversas pessoas e animais via dilúvio — Deus soa como uma figura mimada e impulsiva, que jamais justifica suas ordens a contento. Diante da agonia dos bichos se afogando e racionando comida, talvez seja a entidade divina o verdadeiro vilão da história (interpretação esta obviamente indesejada pelos autores).
O roteiro possui dificuldade em orquestrar, em paralelo, tantos personagens e ações. A proposta do concurso de música nunca realmente surte efeito (a competição será praticamente abortada a seguir); a subtrama dos amigos buscando o raminho é esquecida durante tempo excessivo pela montagem; o problema gravíssimo da falta de comida e da precariedade da embarcação será dispensado mais tarde. Os criadores se mostram excelentes criadores de conflitos, ainda que não os resolvam de fato, preferindo abandonar a maioria de seus dilemas.
Em paralelo, é interessante que, numa fábula musical repleta de animais artistas (encarnados por nossos maiores atores e cantores), as canções possuem papel acessório, seja mercantil (o dilema da venda das composições autorais), seja de enganação ou estratégia política (a dublagem inverossímil, nos moldes de Cantando na Chuva). A música não acalma as feras — o ideal conciliador e civilizatório da arte —, nem promove uma meritocracia devido ao talento excepcional — como se encontra no norte-americano Sing. Canta-se por distração, para ganhar tempo até libertar uma ratinha presa, ou para distrair bichos aprisionados.
No final, apesar de seus excessos e falhas (nas quais se inclui a segunda metade particularmente arrastada), Arca de Noé possui um saldo positivo. O cinema de animação brasileiro se encontra em momento grandioso, com excelentes longas-metragens independentes (Placa-Mãe) e também tentativas de superproduções como esta, concebida em parceria com a Índia. A qualidade da técnica da animação, da luz, da direção de arte e, sobretudo, do trabalho de vozes é impressionante. Oferece-se ao público um produto e uma obra de arte capaz de rivalizar, sem falsa modéstia, com os conhecidos referenciais dos Estados Unidos.
Além disso, a animação representa uma tentativa importantíssima de estabelecer um filme do meio, capaz de dialogar com crítica e público, ou seja, de promover reflexão crítica enquanto diverte com acenos à cultura pop e à música brasileira. Os diretores Sérgio Machado e Alois di Leo não ignoram nenhuma parcela da sociedade, compreendendo a necessidade de abraçar tanto os grupos modernos quanto os conservadores, tanto a cultura popular quanto a erudita, tanto a Bíblia quanto a comunidade LGBQTIA+. Ele não consegue necessariamente contemplar estes grupos em profundidade, porém atesta para uma nova concepção de blockbuster pensado especificamente para o caso brasileiro — num horizonte de conciliação política e ideológica. O resultado possui valor notável enquanto iniciativa e sintoma de sua época.