Ariel (2025)

O teatro sem fim

título original (ano)
Ariel (2025)
país
Espanha, Portugal
linguagem
Fantasia, Experimental
duração
108 minutos
direção
Lois Patiño
elenco
Agustina Muñoz, Irene Escolar, Hugo Torres, José Díaz, César Lima, Filipe Porteiro, Susana Salema, Marta Pazos
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

Em Ariel, todos os personagens são atores de teatro. Parte-se de uma encenação pop de Shakespeare, incluindo um número musical apresentado à plateia, para então deslocar a protagonista rumo a uma ilha mágica, onde todos são personagens do dramaturgo. Depois de tanto tempo presos no local, já se esqueceram da existência de uma vida fora da ficção. Repetem, dia após dia, as falas que foram incumbidos de declamar. Aqueles que se envenenam (caso de Romeu e Julieta) morrem de fato, apenas para ressuscitarem no dia seguinte, quando recomeçam o espetáculo. Cada vez que alguém abre um livro do bardo, os habitantes-escravos tornam a desempenhar suas funções. O trabalho nunca termina. A arte, também não.

Curiosa ideia do cineasta Lois Patiño, fundindo a narrativa clássica com elementos assumidos do teatro do absurdo. Acostumado a obras bastante herméticas, o galego constrói um de seus filmes mais acessíveis, disposto a explicar com calma e didatismo seu funcionamento particular. Ele cita as obras referenciadas (em particular, A Tempestade, de William Shakespeare, e Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello), verbaliza através das atrizes a configuração fabulosa desta ilha nos Açores, e repete alguns mecanismos no intuito de clareza (a chamada pelos Calibãs, os sonhos com sobreposição de imagens do mar). Ao invés de explorar a fronteira entre documentário e fantasia, abraça sem meios-termos esta última.

A mistura do rigoroso cinema de invenção com o “teatro amador da comunidade” constrói uma experiência surpreendentemente acolhedora e generosa. Um raro cinema de experimentação para todos.

Isso implica num filme inesperadamente leve e engraçado. Embora se irrite com o status de prisioneira de uma obra literária, assombrada pela ficção, a viajante Agustina (Agustina Muñoz) logo se presta ao jogo e provoca as regras locais, para ver até onde os habitantes realmente acreditam na ilha enquanto teatro permanente. Ela confessa estar num filme dirigido por Lois Patiño, em colaboração com Matías Piñeiro, e relembra a Irene Escolar as diversas gerações de atores que compõem sua família. A metalinguagem nunca busca ser maliciosa e surpreendente, apenas franca ao limite da pedagogia infantil. Sim, estamos num filme. Sim, estamos numa peça. Sim, atores interpretam personagens. Ao invés da imersão habitual na ficção, somos convidados a nos divertir com a artificialidade escancarada no trabalho do ator.

Além disso, o aspecto lúdico da proposta se completa com o convite para habitantes reais das ilhas interpretarem Shakespeare. Não se busca a qualidade do jogo cênico, mas a disposição de homens e mulheres, jovens e idosos, a encarnarem alguma figura do autor num palco aberto e infinito. Trata-se de um filme elaborado com os moradores, ao invés de sobre eles. Em consequência, Patiño provoca fricções entre o erudito e o popular, entre o clássico e o contemporâneo. Parte do humor decorre destas figuras do século XXI entoando frases de um palavreado em desuso, evocando atos de bravura, mortes inevitáveis e amores eternos. O aspecto banal das imagens se confronta com o teor solene do texto de origem.

Isso implica na tentativa de popularizar o teatro clássico através do cinema, e de confrontar a narratividade da peça aos caminhos não-narrativos do cinema experimental. O encontro entre artes se estende ao encontro entre países: Espanha e Portugal fundem-se como uma cultura indissociável. Um personagem fala em espanhol, e recebe a resposta em português. Todos se compreendem. Nota-se certa vontade de conceber a criação artística enquanto processo coletivo, permitido a todos. O cineasta minimiza a hierarquia entre atores e público, entre profissionais e amadores. Em consequência, concebe utopicamente a arte enquanto parte indissociável da vida em comunidade.

Para quem espera o teor sulfuroso e anárquico de algumas peças do teatro do absurdo, encontrará, inversamente, o doce aspecto dos sonhos agradáveis — estes, também, compartilhados. Na travessia de balsa, todos os passageiros dormem, e seus devaneios coincidem. São levados a uma tempestade, tingida pelo cineasta em tons rosa-lilás. Ao acordarem, deparam-se com o céu azul e a calmaria nas águas. O barco nunca está em perigo de fato, nem estes personagens supostamente escravizados pela literatura. Em cada uma das dezenas de transições entre cenas, apoiada na imagem de ondas do mar (de maneira repetitiva até demais, diga-se de passagem), confirma-se a vocação ao devaneio. 

Por que observar o real, se posso construir um mundo inexistente? Patiño confirma, assim, a vocação a buscar uma realidade suspensa, posta entre parêntese. Nos excelentes Samsara: A Jornada da Alma (2023) e Sycorax (2021) — este último, já dedicado a adaptar A Tempestade —, ele abraça o artifício enquanto meio e finalidade. Para tal, rompe com os elementos básicos da mise en scène: o espaço (através da ilha fabular, da qual ninguém consegue sair) e o tempo (com o looping dos dias repetidos). “O tempo não passa. Só existe o presente da peça”, explica uma personagem. O sonho, portanto, decorreria da desconexão, consciente ou não, da representação do mundo.

 

Enquanto isso, as cores se tornam mais fortes, o contraste se acentua, e o grão da película também nos distancia das obras digitais da contemporaneidade. Mesmo a textura da imagem e a construção sonora nos conduzem para fora do espaço-tempo. Existe maneira mais melancólica e poética de representar a ruptura com a contemporaneidade, do que filmar com cores e tons de antigamente? Embora nunca chame atenção à própria direção, que se priva de estripulias com a câmera e outras demonstrações de vaidade, o projeto transparece este controle discreto, e perfeitamente coeso por parte do criador, de som e imagem, de discurso e estética.

“E esse lugar? É isso a realidade?”, questiona Agustina. Ora, interessa realmente saber? Enquanto a protagonista investiga, seu alter-ego, Ariel, constitui uma faísca de revolução no ambiente de regras rígidas. Ela não aguenta mais declamar seu texto, nem cumprir seu propósito neste espaço. Quer romper com o feitiço, ver-se livre para interpretar qualquer outro texto, ou mesmo, texto nenhum. “É a personagem que diz o autor o que fazer, não o contrário”, explica-se. Ao humanizar estas figuras de ficção, borrando as fronteiras entre o objeto e sua representação, Patiño dessacraliza Shakespeare, trazendo-o a uma realidade comicamente palpável e banal. A mistura do rigoroso cinema de invenção com o “teatro amador da comunidade” constrói uma experiência surpreendentemente acolhedora e generosa. Um raro cinema de experimentação para todos.

Ariel (2025)
8
Nota 8/10

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