Onças por todos os lados. Neste curta-metragem, há roupas com estampa de onça, imagens de onças na floresta, programas de televisão a respeito destes animais, objetos de decoração que mencionam o felino, e uma canção de tecnobrega fazendo alusão a seu poder e força. A diretora Rafaelly La Conga Rosa escolhe este símbolo enquanto forma de costurar imagens plurais, a partir de uma raríssima captação em Super 8. Por mais diversas que sejam em foco e linguagem, serão unidas pela imagem da onça.
Este ícone se desvenda ao espectador enquanto artifício. Longe do naturalismo (que talvez fosse a escolha mais óbvia, em se tratando da natureza), a autora prefere escancarar o caráter posado dos cenários e dos atores, o exagero das estampas, a rigidez da composição. Prefere, desta maneira, investir no caminho da performance, uma das formas de expressão privilegiadas para a representação do corpo trans e de sua identidade no cinema queer. Afinal, os corpos marginalizados carregam uma mensagem e uma simbologia em si próprios.
Logo, cabe às autoras desenvolver para as personagens uma dinâmica e maneira de se colocar no mundo que condicione um novo olhar a subjetividades invisibilizadas. Seja Renata Carvalho em Corpo Sua Autobiografia, seja Noá Bonoba em Panteras (dois filmes exibidos na Mostra Quelly), pede-se que assumam a vocação performática de seus corpos. Nada de tentar desaparecer na multidão, passar despercebidas para evitar ataques: estas pessoas exigem e merecem ser vistas.
O roteiro proporciona a experiência próxima a folhear um álbum de retratos. Oferece ao espectador momentos de comunhão, amizade, brincadeiras no rio. As onças também representam estas jovens que se banham juntas, dormem juntas. Outro aspecto comum dos curtas-metragens queer reside do foco em famílias formadas por laços eletivos, ou seja, a valorização das amizades em detrimento dos núcleos patriarcais tradicionais. Há modos alternativos, e igualmente válidos, de se construir redes de apoio.
A exibição do afeto com e por indivíduos trans se torna essencial num país onde raras pessoas possuem indivíduos transexuais entre os amigos, namorados e próximos. O momento da pandemia, destacado em As Inesquecíveis, serve como catalisador à demanda por comunhão. Afinal, mulheres e homens trans, isolados da sociedade previamente, se viram ainda mais segregados. As cenas de coletividade, incluindo fragmentos do Encontro Nacional para a Preservação da Vida e Memória Trans, permitem reforçar um pensamento gregário e organizado, capaz de incluir estes cidadãos e estas cidadãs.
O projeto reivindica suas pautas de maneira leve, abraçando o humor. A estrutura incomum das composições e a direção de arte kitsch favorecem o olhar distanciado em relação a estes espaços. A longa cena de dança que encerra o filme também diverte pela ausência de contexto, e pela expressividade sem limites da personagem central. É curioso como as pautas políticas se fazem muito mais eficazes quando abandonam o caráter acusador e pedagógico para propor uma releitura lúdica, irônica ou fantasista. As Inesquecíveis privilegia este caminho.
Talvez a conclusão ocorra de maneira abrupta demais. A dança catártica corresponde a um bom clímax, embora soe insuficiente enquanto desfecho. Faltava justamente uma síntese à apresentação de imagens de aparências desiguais, em janela mais quadrada ou retangular. O projeto lança belas ideias e propostas de linguagem, embora demonstre menos interesse em traçar reflexões a partir de tantas iniciativas. Mesmo assim, soa como uma celebração audiovisual de corpos e identidades, comparadas simbolicamente à força e naturalidade da onça, tipicamente brasileira, e motivo de orgulho nacional.