Há inúmeras abordagens no interior deste projeto. Inicialmente, o cineasta moçambicano Inadelso Cossa decide conversar com sua avó e demais sobreviventes da cruel guerra civil que abalou o país entre 1977 e 1992. Pede a estes senhores e senhoras que relembrem os lugares onde se escondiam, o medo dos barulhos à noite, as pessoas queridas que morreram pelo caminho.
Este segmento constitui um documentário convencional de entrevistas e materiais de arquivo — o autor insiste em deixar suas perguntas na montagem, enquanto revela a captação de sons diretos, a câmera se reenquadrando durante um depoimento, etc. O autor sublinha o aspecto do cinema enquanto processo, para que o espectador compartilhe do fazer cinematográfico na condição de cúmplice. Para ele, interessam tanto as respostas obtidas destes encontros quanto o ato retórico de filmar. Logo, a edição oferece espaços equivalentes aos dois na narrativa.
Em seguida, As Noites Ainda Cheiram a Pólvora introduz um componente marcante de ficcionalização com finalidades poéticas. Cossa segue um garotinho correndo pelos campos de Maputo, com os braços abertos tal qual um avião, até filmá-lo, em plano próximo e ângulo diferenciado, jogando-se voluntariamente no chão. O ato de buscar água no poço também ganha uma decupagem típica da ficção. O cineasta pede que o casal formado por Zalina e Macuacua reencene os dias em que se afastaram, quando ele partiu lutar na guerra. Então, ela segura crianças no colo, reclama da solidão aos céus, e chora pelo amor distante.
O resultado transparece boas intenções e muita cinefilia, apesar da incoerência de estilos costurados desajeitadamente pela montagem. A obra possui mais pose do que humanismo.
Além disso, o projeto investe em diversas cenas noturnas, que atribuem um aspecto sombrio à estética geral (vide a imagem em destaque, acima). À noite, iluminados por um único foco direcional, pessoas admiram o horizonte, ou disparam minúsculas reflexões em voz baixa acerca do estado das coisas. A referência mais próxima seria o cinema de Pedro Costa, de quem o moçambicano se propõe a fazer praticamente uma cópia. As figuras femininas são idênticas àquelas de Vitalina Varela (2019); as mãos segurando um bastão à noite, em meio à escuridão, remetem aos planos de Cavalo Dinheiro (2014).
Há um diferencial importante, no entanto: os projetos do diretor português apresentam um uso extremamente preciosíssimo de direção de fotografia, num trabalho desenvolvido ao longo de muitos anos com Leonardo Simões. O mesmo não parece ocorrer na coprodução moçambicana-alemã-francesa-portuguesa-holandesa-norueguesa apresentada no Festival de Berlim. Ao mergulhar corpos e cenários nas sombras profundas, o autor não trabalha a riqueza dos enquadramentos ou da profundidade de campo. Em paralelo, deixa de construir uma assinatura própria — primeiro, porque esta linguagem decorre diretamente de Costa, e segundo, porque as imagens da noite dialogam mal com as filmagens diurnas, em textura digital de baixa qualidade.
Ainda durante os devaneios noturnos, Cossa assume a postura de narrador em off, encarregado de explicar as motivações ao espectador por meio de um existencialismo lânguido. “Trago comigo a luz do cinema para iluminar todos os nossos medos”, “O cinema se fez memória”. Enquanto isso, dispara questionamentos, novamente retóricos e amplos, acerca de suas intenções para o futuro do país: “Poderão elas [as crianças locais] escapar ao eterno ciclo de violência?”, “Estaremos realmente prontos para nos reconciliar com o passado?”.
Estes fragmentos descontextualizados se casam com uma imagem igualmente dispersa da guerra civil. A obra menciona inúmeras vezes a tragédia que assolou o país, sem jamais investigar suas origens, suas motivações, nem a maneira como se encerrou. Nota-se uma vontade ainda temerária de tocar no assunto, como se buscasse apenas investigar as feridas humanas e traumas nos habitantes, evitando as circunstâncias políticas e sociais fundamentais ao confronto. Na ausência destas especificidades, a ferida recente se converte numa batalha universalizante e despersonalizada, à qual se dedica um claro julgamento moral: a quem interessar possa, sou contra. Está anotado.
Ainda mais delicadas são as conversas do diretor com a avó e demais conterrâneos. Cossa possui uma maneira truncada de abordar o tema, disparando perguntas para as quais seus entrevistados não teriam respostas, ou insistindo em evidências de caráter sentimental. Documentários e outros projetos audiovisuais, sobretudo aqueles a respeito de feridas históricas, precisam adotar uma precaução ética central para não traumatizarem novamente as pessoas que recordam instantes violentos do passado.
Ora, As Noites Ainda Cheiram a Pólvora não consegue deixar os participantes confortáveis em frente à câmera, nem os coloca numa posição solidária, de igual para igual. Face à avó, o cineasta pergunta a quantidade exata de mortos, ao que ela responde: “Não sei”. E por que a mulher teria estes dados específicos? Adiante, questiona como o avô morreu, para o estranhamento da senhora idosa que contesta: “Você sabe”. Depois, ele insiste: “Foi doloroso para você? Sente a falta dele?”, ao que ela responde que sim, obviamente. Os questionamentos constrangedores lembram alguma reportagem sensacionalista de programas de televisão na cobertura de catástrofes.
O operador de som, posando em terços exatos do enquadramento, para que a luz única lhe banhe o rosto (durante os trechos noturnos pedro-costianos), deixa claro o desconforto em evocar seus traumas de infância com o episódio. Não adianta: o diretor insiste, pede por confissões de pesadelos que o outro tenha sofrido quando pequeno. Há notável falta de tato, mas também de empatia e de preparação cinematográfica para lidar com o impacto que estas lembranças possam despertar nas pessoas envolvidas. Assim, os personagens são objetificados para que o diretor extraia deles as respostas desejadas. O filme não é feito com os sobreviventes, mas apesar deles.
O resultado transparece boas intenções e muita cinefilia, além da vontade de criar uma aparência de filme de arte, vaporoso e etéreo, do tipo que impressiona festivais (vide a seleção na Mostra Fórum), apesar da incoerência com os diversos estilos costurados desajeitadamente pela montagem. A obra possui mais pose do que humanismo, porém ainda aponta a um diretor que, caso trabalhe melhor seus conceitos e ferramentas de linguagem, pode oferecer propostas cinematográficas de grande interesse.