As Noites Ainda Cheiram a Pólvora (2024)

A guerra e o cinema de autor

título original (ano)
As Noites Ainda Cheiram a Pólvora (2024)
País
Moçambique, Alemanha, França, Portugal, Holanda, Noruega
linguagem
Documentário, Drama
duração
93 minutos
direção
Inadelso Cossa
com
Inadelso Cossa, Maria Estevão, Moises Langa, Macuacua, Zalina, Elisa
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Há inúmeras abordagens no interior deste projeto. Inicialmente, o cineasta moçambicano Inadelso Cossa decide conversar com sua avó e demais sobreviventes da cruel guerra civil que abalou o país entre 1977 e 1992. Pede a estes senhores e senhoras que relembrem os lugares onde se escondiam, o medo dos barulhos à noite, as pessoas queridas que morreram pelo caminho. 

Este segmento constitui um documentário convencional de entrevistas e materiais de arquivo — o autor insiste em deixar suas perguntas na montagem, enquanto revela a captação de sons diretos, a câmera se reenquadrando durante um depoimento, etc. O autor sublinha o aspecto do cinema enquanto processo, para que o espectador compartilhe do fazer cinematográfico na condição de cúmplice. Para ele, interessam tanto as respostas obtidas destes encontros quanto o ato retórico de filmar. Logo, a edição oferece espaços equivalentes aos dois na narrativa.

Em seguida, As Noites Ainda Cheiram a Pólvora introduz um componente marcante de ficcionalização com finalidades poéticas. Cossa segue um garotinho correndo pelos campos de Maputo, com os braços abertos tal qual um avião, até filmá-lo, em plano próximo e ângulo diferenciado, jogando-se voluntariamente no chão. O ato de buscar água no poço também ganha uma decupagem típica da ficção. O cineasta pede que o casal formado por Zalina e Macuacua reencene os dias em que se afastaram, quando ele partiu lutar na guerra. Então, ela segura crianças no colo, reclama da solidão aos céus, e chora pelo amor distante. 

O resultado transparece boas intenções e muita cinefilia, apesar da incoerência de estilos costurados desajeitadamente pela montagem. A obra possui mais pose do que humanismo.

Além disso, o projeto investe em diversas cenas noturnas, que atribuem um aspecto sombrio à estética geral (vide a imagem em destaque, acima). À noite, iluminados por um único foco direcional, pessoas admiram o horizonte, ou disparam minúsculas reflexões em voz baixa acerca do estado das coisas. A referência mais próxima seria o cinema de Pedro Costa, de quem o moçambicano se propõe a fazer praticamente uma cópia. As figuras femininas são idênticas àquelas de Vitalina Varela (2019); as mãos segurando um bastão à noite, em meio à escuridão, remetem aos planos de Cavalo Dinheiro (2014).

Há um diferencial importante, no entanto: os projetos do diretor português apresentam um uso extremamente preciosíssimo de direção de fotografia, num trabalho desenvolvido ao longo de muitos anos com Leonardo Simões. O mesmo não parece ocorrer na coprodução moçambicana-alemã-francesa-portuguesa-holandesa-norueguesa apresentada no Festival de Berlim. Ao mergulhar corpos e cenários nas sombras profundas, o autor não trabalha a riqueza dos enquadramentos ou da profundidade de campo. Em paralelo, deixa de construir uma assinatura própria — primeiro, porque esta linguagem decorre diretamente de Costa, e segundo, porque as imagens da noite dialogam mal com as filmagens diurnas, em textura digital de baixa qualidade.

Ainda durante os devaneios noturnos, Cossa assume a postura de narrador em off, encarregado de explicar as motivações ao espectador por meio de um existencialismo lânguido. “Trago comigo a luz do cinema para iluminar todos os nossos medos”, “O cinema se fez memória”. Enquanto isso, dispara questionamentos, novamente retóricos e amplos, acerca de suas intenções para o futuro do país: “Poderão elas [as crianças locais] escapar ao eterno ciclo de violência?”, “Estaremos realmente prontos para nos reconciliar com o passado?”

Estes fragmentos descontextualizados se casam com uma imagem igualmente dispersa da guerra civil. A obra menciona inúmeras vezes a tragédia que assolou o país, sem jamais investigar suas origens, suas motivações, nem a maneira como se encerrou. Nota-se uma vontade ainda temerária de tocar no assunto, como se buscasse apenas investigar as feridas humanas e traumas nos habitantes, evitando as circunstâncias políticas e sociais fundamentais ao confronto. Na ausência destas especificidades, a ferida recente se converte numa batalha universalizante e despersonalizada, à qual se dedica um claro julgamento moral: a quem interessar possa, sou contra. Está anotado.

Ainda mais delicadas são as conversas do diretor com a avó e demais conterrâneos. Cossa possui uma maneira truncada de abordar o tema, disparando perguntas para as quais seus entrevistados não teriam respostas, ou insistindo em evidências de caráter sentimental. Documentários e outros projetos audiovisuais, sobretudo aqueles a respeito de feridas históricas, precisam adotar uma precaução ética central para não traumatizarem novamente as pessoas que recordam instantes violentos do passado. 

Ora, As Noites Ainda Cheiram a Pólvora não consegue deixar os participantes confortáveis em frente à câmera, nem os coloca numa posição solidária, de igual para igual. Face à avó, o cineasta pergunta a quantidade exata de mortos, ao que ela responde: “Não sei”. E por que a mulher teria estes dados específicos? Adiante, questiona como o avô morreu, para o estranhamento da senhora idosa que contesta: “Você sabe”. Depois, ele insiste: “Foi doloroso para você? Sente a falta dele?”, ao que ela responde que sim, obviamente. Os questionamentos constrangedores lembram alguma reportagem sensacionalista de programas de televisão na cobertura de catástrofes.

O operador de som, posando em terços exatos do enquadramento, para que a luz única lhe banhe o rosto (durante os trechos noturnos pedro-costianos), deixa claro o desconforto em evocar seus traumas de infância com o episódio. Não adianta: o diretor insiste, pede por confissões de pesadelos que o outro tenha sofrido quando pequeno. Há notável falta de tato, mas também de empatia e de preparação cinematográfica para lidar com o impacto que estas lembranças possam despertar nas pessoas envolvidas. Assim, os personagens são objetificados para que o diretor extraia deles as respostas desejadas. O filme não é feito com os sobreviventes, mas apesar deles.

O resultado transparece boas intenções e muita cinefilia, além da vontade de criar uma aparência de filme de arte, vaporoso e etéreo, do tipo que impressiona festivais (vide a seleção na Mostra Fórum), apesar da incoerência com os diversos estilos costurados desajeitadamente pela montagem. A obra possui mais pose do que humanismo, porém ainda aponta a um diretor que, caso trabalhe melhor seus conceitos e ferramentas de linguagem, pode oferecer propostas cinematográficas de grande interesse.

As Noites Ainda Cheiram a Pólvora (2024)
5
Nota 5/10

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