Há muito em jogo neste filme. À primeira vista, ele retrata a viagem de uma garota que foge da polícia e de si mesma, ao perceber o gosto incontrolável por carne humana. Quando conhece um garoto movido por pulsões semelhantes, nasce uma relação que remete sucessivamente a um núcleo familiar, um casal de namorados ou a uma pequena gangue de marginais. Esta seria a história de amor e acolhimento de uma garota abandonada pelo pai e pela mãe, e o espectador pode se ater a esta leitura inicial, fornecida com toda a delicadeza e sensibilidade pelo diretor Luca Guadagnino.
No entanto, Até os Ossos representa igualmente uma potente metáfora da marginalidade nos Estados Unidos sob Ronald Reagan. Enquanto o povo protestava contra uma guerra cara e interminável no Vietnã, os cidadãos ficavam mais pobres, sem oportunidades de trabalho, e perseguidos por um Estado mais voltado ao papel dominador do que protetor. De certo modo, o roteiro baseado no livro Bones and All, de Camille DeAngelis, contrasta a visão do governo enquanto disciplinador e autoritário (em moldes da masculinidade clássica) ou cuidador (nos moldes da feminilidade simbólica).
Em paralelo, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet) ilustram a alteridade racial, de gênero e de classe. Trata-se, em especial, de uma garota negra e pobre, e de um menino largado pela família de baixa renda. Eles são abandonados pelo Estado-família, e também pelas famílias de fato. O recurso extremo ao canibalismo soa como uma alusão à necessidade de sobreviverem e se sustentarem num país que se volta contra si mesmo, se devora e se destrói internamente. O fato de nunca serem perturbados pela polícia serve de reflexo à sociedade deixada a esmo, sob seus próprios cuidados. As instituições não estão funcionando.
A sexualidade e afetividade de ambos também permite uma leitura interessante. Afinal, o desejo pela carne vai além da saciedade do organismo, contendo um evidente prazer sexual e também o êxtase comparado àquele de uma droga. Quando descrevem a sua “primeira vez”, estão falando de uma virgindade que reúne todas essas experiências, misturando pulsões de vida e morte, de incorporação do outro via sexo ou ingestão da carne. “Me come”, pede um personagem ao colega canibal, enquanto a imagem revela uma embalagem aberta de camisinha sobre a cômoda do quarto. Mesmo que a língua inglesa não possua a mesma ambiguidade do verbo “comer”, como em português, a ideia de comer alguém, no duplo sentido brasileiro, se aplica a esta trajetória.
O recurso extremo ao canibalismo soa como uma alusão à necessidade de sobreviverem e se sustentarem num país que se volta contra si mesmo, se devora e se destrói internamente.
Logo, as pessoas se amam e se devoram, se apaixonam e se destroem. A mãe canibal rejeita a filha, por medo de fazer mal a ela; outro acaba punindo um sujeito indesejável ao devorar as suas entranhas. O amor está fadado à selvageria. No avesso do amor romântico, construtivo em vários sentidos do termo (por gerar filhos, casa, família, e um núcleo social novo), oferece-se o sentimento amoroso perverso e destrutivo. Devo afastar a garota que amo, para protegê-la de meus impulsos, ou mantê-la por perto, para viver intensamente o relacionamento enquanto possível? A dinâmica de aproximação perversa e afastamento nocivo dita a dinâmica do filme.
Neste caso, pouco importa que Maren e Lee devorem homens ou mulheres, jovens ou idosos. Carne é carne. Assim, eles ultrapassam a lógica heteronormativa: a primeira imagem da protagonista surge da interação sangrenta com uma menina, a quem parece chupar um dedo, sedutoramente. Adiante, o namorado faz sexo com um rapaz. A lógica do desejo se impõe sobre identidades, fazendo com que todos os personagens sejam erotizados e passíveis de serem comidos, para além da orientação sexual e de gênero, e de qualquer menção à genitalidade. Aqui, o verdadeiro orifício oferecido ao sexo é a boca, enquanto os dentes representam a mistura de controle e violência — a boca que beija é aquela que rasga um pescoço e devora intestinos.
Guadagnino aborda estes temas, e tantos outros, através de uma linguagem incrivelmente coesa e romântica. Isso não significa atenuar as violências, pelo contrário. Cada vez que irrompem em tela, as sequências de agressão possuem sangue, vísceras e gritos suficientes para se aproximarem do horror. No entanto, em seguida, os protagonistas se beijam, se abraçam, se protegem. É louvável que o olhar da direção jamais carregue qualquer julgamento moral à dupla. Eles não são vítimas, nem heróis transgressores, apenas sobreviventes semelhantes a quaisquer outros no país devastado. A amizade tóxica com Sully (Mark Rylance) ilustra o componente de um afeto opressor, ao limite da loucura.
O cineasta emprega uma série de recursos que posicionam o espectador perto dos protagonistas, porém com distanciamento suficiente para questionar o conteúdo. Ele observa a dupla por lentes teleobjetivas afastadas, como se ambos estivessem sendo observados; e propõe estranhos zoom-ins nos dois. Em outros momentos, efetua guinadas violentas da câmera — caso da cena inicial, na escola. A textura granulada também contribui à percepção de algo estetizado, capaz de observar o mundo sem aderir por completo a ele. É fascinante que a “normalidade” seja retratada com os recursos mais artificiais (os enquadramentos e ângulos estranhos na escola, na casa das amigas, à noite com o pai), enquanto a vazão do instinto selvagem adquire um caráter naturalista. A câmera se acalma quando os personagens enfim se aceitam enquanto canibais.
Em paralelo, as imagens de travessia por vários estados norte-americanos está impregnada de nostalgia, melancolia face à perda de valores e de união. Até os Ossos combina de maneira coesa uma quantidade inesperada e rara de gêneros e subgêneros, como o drama, o romance, o suspense, o horror, a fantasia, o road movie, o buddy movie, o coming of age story. Este é um filme de zumbis, mas também um filme de super-heróis dotados do poder de farejar uns aos outros à distância. Os poderes constituem os motores da exclusão social, tornando-se uma dádiva e uma maldição. Aquilo que te faz especial permite a sobrevivência em meio adverso, porém garante a exclusão perpétua do resto da sociedade.
Conforme Maren e Lee percorrem a América profunda, eles se deparam com uma galeria assustadora de personagens coadjuvantes, encarnados por grandes atores em performances memoráveis. Cada encontro fascina pelo teor simultâneo de amizade e ameaça: estes indivíduos protegem enquanto oferecem risco, e assim, a dupla logo corre para uma nova cidade, para lugar nenhum, para longe, para fora. Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, David Gordon Green, Jessica Harper e Chloë Sevigny oferecem, em turnos sucessivos, instantes de grande impacto visual e emocional, como se o desgaste dos sentimentos precisasse passar pela destruição do corpo. A metáfora do canibal que devora “até os ossos”, como sugere o título, ilustra a ideia de “viver intensamente”, típica de uma ideologia hippie, levando à óbvia corrosão do ser.
Embora multiplique as viagens e personagens, o roteiro nunca perde de vista a perspectiva de Maren, enquanto fio condutor da trama. É ela quem experimenta esta espécie de guerra civil, onde as possibilidades incluem matar ou ser morto — caso em que os ataques se assemelham a atos de legítima defesa, de sobrevivência na selva. No caminho, mais do que o amor por Lee, ela descobre o amor-próprio, e a aceitação de seu instinto canibal, que nunca será superado, nem contido. Trata-se de um desejo incapaz de ser domesticado ou controlado pela igreja, pelos políticos, pelos familiares. A jovem estudante também se aventura por uma jornada de emancipação feminina e afirmação do próprio corpo. Neste sentido, o resultado se aproxima bastante do body horror proposto por Julia Ducournau em Titane (2021) e Raw (2016).
Ao final, Até os Ossos promove uma jornada hipnótica, repleta de símbolos extremos, porém não óbvios. Há uma infinidade de leituras possíveis através desta jornada de autodescoberta, o que transforma o discurso em algo muito mais interessante do que um mero grito de alerta sobre a exclusão social. Mauren é frágil e forte, delicada e brutal, indefesa e perfeitamente capaz de se sustentar sozinha. Ela condensa uma série de qualidades e defeitos, de vícios e virtudes, que a tornam complexa e fácil de se identificar. Nada é mais potente e provocador do que a oferta de identificação e carinho por uma canibal sangrenta. O filme nos propõe, através da garota, a observação de nosso próprio lado monstruoso.