Até os Ossos (2022)

As veias abertas dos Estados Unidos

título original (ano)
Bones and All (2022)
país
Estados Unidos
gênero
Romance, Drama
duração
130 minutos
direção
Luca Guadagnino
elenco
Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, André Holland, Chloë Sevigny, Jessica Harper, David Gordon Green, Michael Stuhlbarg, Jake Horowitz
visto em
Cinemas

Há muito em jogo neste filme. À primeira vista, ele retrata a viagem de uma garota que foge da polícia e de si mesma, ao perceber o gosto incontrolável por carne humana. Quando conhece um garoto movido por pulsões semelhantes, nasce uma relação que remete sucessivamente a um núcleo familiar, um casal de namorados ou a uma pequena gangue de marginais. Esta seria a história de amor e acolhimento de uma garota abandonada pelo pai e pela mãe, e o espectador pode se ater a esta leitura inicial, fornecida com toda a delicadeza e sensibilidade pelo diretor Luca Guadagnino.

No entanto, Até os Ossos representa igualmente uma potente metáfora da marginalidade nos Estados Unidos sob Ronald Reagan. Enquanto o povo protestava contra uma guerra cara e interminável no Vietnã, os cidadãos ficavam mais pobres, sem oportunidades de trabalho, e perseguidos por um Estado mais voltado ao papel dominador do que protetor. De certo modo, o roteiro baseado no livro Bones and All, de Camille DeAngelis, contrasta a visão do governo enquanto disciplinador e autoritário (em moldes da masculinidade clássica) ou cuidador (nos moldes da feminilidade simbólica).

Em paralelo, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet) ilustram a alteridade racial, de gênero e de classe. Trata-se, em especial, de uma garota negra e pobre, e de um menino largado pela família de baixa renda. Eles são abandonados pelo Estado-família, e também pelas famílias de fato. O recurso extremo ao canibalismo soa como uma alusão à necessidade de sobreviverem e se sustentarem num país que se volta contra si mesmo, se devora e se destrói internamente. O fato de nunca serem perturbados pela polícia serve de reflexo à sociedade deixada a esmo, sob seus próprios cuidados. As instituições não estão funcionando.

A sexualidade e afetividade de ambos também permite uma leitura interessante. Afinal, o desejo pela carne vai além da saciedade do organismo, contendo um evidente prazer sexual e também o êxtase comparado àquele de uma droga. Quando descrevem a sua “primeira vez”, estão falando de uma virgindade que reúne todas essas experiências, misturando pulsões de vida e morte, de incorporação do outro via sexo ou ingestão da carne. “Me come”, pede um personagem ao colega canibal, enquanto a imagem revela uma embalagem aberta de camisinha sobre a cômoda do quarto. Mesmo que a língua inglesa não possua a mesma ambiguidade do verbo “comer”, como em português, a ideia de comer alguém, no duplo sentido brasileiro, se aplica a esta trajetória.

O recurso extremo ao canibalismo soa como uma alusão à necessidade de sobreviverem e se sustentarem num país que se volta contra si mesmo, se devora e se destrói internamente.

Logo, as pessoas se amam e se devoram, se apaixonam e se destroem. A mãe canibal rejeita a filha, por medo de fazer mal a ela; outro acaba punindo um sujeito indesejável ao devorar as suas entranhas. O amor está fadado à selvageria. No avesso do amor romântico, construtivo em vários sentidos do termo (por gerar filhos, casa, família, e um núcleo social novo), oferece-se o sentimento amoroso perverso e destrutivo. Devo afastar a garota que amo, para protegê-la de meus impulsos, ou mantê-la por perto, para viver intensamente o relacionamento enquanto possível? A dinâmica de aproximação perversa e afastamento nocivo dita a dinâmica do filme.

Neste caso, pouco importa que Maren e Lee devorem homens ou mulheres, jovens ou idosos. Carne é carne. Assim, eles ultrapassam a lógica heteronormativa: a primeira imagem da protagonista surge da interação sangrenta com uma menina, a quem parece chupar um dedo, sedutoramente. Adiante, o namorado faz sexo com um rapaz. A lógica do desejo se impõe sobre identidades, fazendo com que todos os personagens sejam erotizados e passíveis de serem comidos, para além da orientação sexual e de gênero, e de qualquer menção à genitalidade. Aqui, o verdadeiro orifício oferecido ao sexo é a boca, enquanto os dentes representam a mistura de controle e violência — a boca que beija é aquela que rasga um pescoço e devora intestinos. 

Guadagnino aborda estes temas, e tantos outros, através de uma linguagem incrivelmente coesa e romântica. Isso não significa atenuar as violências, pelo contrário. Cada vez que irrompem em tela, as sequências de agressão possuem sangue, vísceras e gritos suficientes para se aproximarem do horror. No entanto, em seguida, os protagonistas se beijam, se abraçam, se protegem. É louvável que o olhar da direção jamais carregue qualquer julgamento moral à dupla. Eles não são vítimas, nem heróis transgressores, apenas sobreviventes semelhantes a quaisquer outros no país devastado. A amizade tóxica com Sully (Mark Rylance) ilustra o componente de um afeto opressor, ao limite da loucura.

O cineasta emprega uma série de recursos que posicionam o espectador perto dos protagonistas, porém com distanciamento suficiente para questionar o conteúdo. Ele observa a dupla por lentes teleobjetivas afastadas, como se ambos estivessem sendo observados; e propõe estranhos zoom-ins nos dois. Em outros momentos, efetua guinadas violentas da câmera — caso da cena inicial, na escola. A textura granulada também contribui à percepção de algo estetizado, capaz de observar o mundo sem aderir por completo a ele. É fascinante que a “normalidade” seja retratada com os recursos mais artificiais (os enquadramentos e ângulos estranhos na escola, na casa das amigas, à noite com o pai), enquanto a vazão do instinto selvagem adquire um caráter naturalista. A câmera se acalma quando os personagens enfim se aceitam enquanto canibais.

Em paralelo, as imagens de travessia por vários estados norte-americanos está impregnada de nostalgia, melancolia face à perda de valores e de união. Até os Ossos combina de maneira coesa uma quantidade inesperada e rara de gêneros e subgêneros, como o drama, o romance, o suspense, o horror, a fantasia, o road movie, o buddy movie, o coming of age story. Este é um filme de zumbis, mas também um filme de super-heróis dotados do poder de farejar uns aos outros à distância. Os poderes constituem os motores da exclusão social, tornando-se uma dádiva e uma maldição. Aquilo que te faz especial permite a sobrevivência em meio adverso, porém garante a exclusão perpétua do resto da sociedade.

Conforme Maren e Lee percorrem a América profunda, eles se deparam com uma galeria assustadora de personagens coadjuvantes, encarnados por grandes atores em performances memoráveis. Cada encontro fascina pelo teor simultâneo de amizade e ameaça: estes indivíduos protegem enquanto oferecem risco, e assim, a dupla logo corre para uma nova cidade, para lugar nenhum, para longe, para fora. Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, David Gordon Green, Jessica Harper e Chloë Sevigny oferecem, em turnos sucessivos, instantes de grande impacto visual e emocional, como se o desgaste dos sentimentos precisasse passar pela destruição do corpo. A metáfora do canibal que devora “até os ossos”, como sugere o título, ilustra a ideia de “viver intensamente”, típica de uma ideologia hippie, levando à óbvia corrosão do ser.

Embora multiplique as viagens e personagens, o roteiro nunca perde de vista a perspectiva de Maren, enquanto fio condutor da trama. É ela quem experimenta esta espécie de guerra civil, onde as possibilidades incluem matar ou ser morto — caso em que os ataques se assemelham a atos de legítima defesa, de sobrevivência na selva. No caminho, mais do que o amor por Lee, ela descobre o amor-próprio, e a aceitação de seu instinto canibal, que nunca será superado, nem contido. Trata-se de um desejo incapaz de ser domesticado ou controlado pela igreja, pelos políticos, pelos familiares. A jovem estudante também se aventura por uma jornada de emancipação feminina e afirmação do próprio corpo. Neste sentido, o resultado se aproxima bastante do body horror proposto por Julia Ducournau em Titane (2021) e Raw (2016).

Ao final, Até os Ossos promove uma jornada hipnótica, repleta de símbolos extremos, porém não óbvios. Há uma infinidade de leituras possíveis através desta jornada de autodescoberta, o que transforma o discurso em algo muito mais interessante do que um mero grito de alerta sobre a exclusão social. Mauren é frágil e forte, delicada e brutal, indefesa e perfeitamente capaz de se sustentar sozinha. Ela condensa uma série de qualidades e defeitos, de vícios e virtudes, que a tornam complexa e fácil de se identificar. Nada é mais potente e provocador do que a oferta de identificação e carinho por uma canibal sangrenta. O filme nos propõe, através da garota, a observação de nosso próprio lado monstruoso.

Até os Ossos (2022)
9
Nota 9/10

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