Maria, Vitória, Cida, Rosa, Ednalva. Estas mulheres cruzam de maneira mais ou menos próxima a vida do diretor João Vieira Torres, através da figura da avó Aurora, uma parteira que residia no Juá. Ao ser atormentado por um sonho, espécie de convocação para buscar suas raízes, o homem radicado na França retorna à Bahia e Pernambuco. Ele visa reencontrar pai, mãe e, principalmente, ler a respeito de tantas tias e parentes cujas filhas nasceram das mãos de Aurora, ou foram cuidadas por ela. O filme parte deste desejo de costurar o real (com trechos tradicionalmente documentais, ao vivo) ao fabular (com construções poéticas encarregadas de preencher a lacunas de fatos e documentos).
Uma linha trágica atravessa estas personagens ausentes: as tias foram expulsas de casa, assassinadas ou queimadas, tanto por pais autoritários quanto por maridos ciumentos — às vezes, com conivência das mães, acostumadas ao sistema patriarcal perpetuado há gerações. Diz-se que uma delas teria aceito o pedaço de tecido de um pretendente, o que motivou a expulsão do lar. Outra foi estuprada e violentamente torturada, apenas para sofrer novas violências de seu algoz, culminando em sua morte no dia seguinte. Há mulheres sobre as quais não se fala, e tias cuja existência o diretor desconhecia.
Um longa-metragem ambicioso, desejando unir a história do Brasil à cultura da violência de gênero, enquanto investiga suas origens na religiosidade cristã.
O retorno promete reconectar simbolicamente os continentes, os gêneros e as gerações. Torres sai da Paris contemporânea, onde vive com os maridos numa casa-biblioteca, para reencontrar residências modestas, algumas delas em ruínas, e mulheres que questionam a sexualidade do artista, ou acreditam em certa naturalidade das relações de posse de maridos sobre esposas. Por mais progressista que a mãe do autor tenha se tornado, ela ainda demonstra desconforto em relação à expressão pública de afeto por parte do filho. O roteiro confronta um ideal de progressismo à francesa com o imaginário do “Brasil profundo”, dotado de óbvias variações e complexidades. Os estereótipos relacionados às duas esferas se diluem.
Este movimento pode despertar questionamentos na cinefilia brasileira, devido à proliferação recente das autobiografias familiares. As docuficções nacionais estão repletas de jovens diretores que apresentam seus avós, tios, pais e parentes enquanto sintomas de uma época, além de representações acessíveis das transformações do país. Bem-Vindos de Novo, Neirud, Meus Dias com Ele, Eneida e Elena são alguns exemplares que vêm à mente. A estrutura habitual destes filmes, baseados em arquivos caseiros, sempre despertou uma impressão mista de admiração (pela ternura e humildade dos autores ao se colocarem em cena) e desprezo (pelo possível egocentrismo de se tornarem o centro da trama, e pela comodidade de trabalharem com materiais disponíveis em algum cômodo de casa).
Ora, surpreende que, durante a apresentação ao público do Olhar de Cinema, Aurora tenha sido descrito por João Vieira Torres e pelo diretor assistente Marcelo Caetano enquanto “ensaio”, ao invés de documentário, híbrido ou categorias análogas. De fato, o projeto se mostra muito mais ambicioso do que este formato caseiro do “eu e os meus”. Primeiro, por captar a vasta maioria de suas imagens, ao invés de depender de VHS e vídeos antigos disponíveis. Segundo, pela disposição em ficcionalizar abertamente algumas sequências, caso do caminhar na noite assombrada por fantasmas, e da festa, quando o protagonista se encanta com um rapaz.
Em terceiro lugar — mais importante de todos —, os criadores buscam expandir o diálogo a partir da árvore familiar. A história se inicia com o autor, para então chegar à avó, às mulheres agredidas, e a um imaginário amplo de nação. (Neste sentido, torna-se mais próximo da estrutura de Retratos Fantasmas, do que daquela adotada pelos exemplos acima). Aurora é um longa-metragem ambicioso, desejando unir a história do Brasil à cultura da violência de gênero, enquanto investiga suas origens na religiosidade cristã. Nota-se a profundidade da pesquisa sociológica e histórica para abarcar tal tema, além da investigação em jornais e demais registros locais, permitindo comparar o tratamento dos feminicídios em diferentes mídias. A maioria dos documentários teria se contentado com uma única menção ao caso, tida como suficiente para esclarecimento de sua existência.
Ora, Torres, Caetano e a produtora Mariana Meliande (potente trio de cineastas distribuídos em diferentes cadeiras do processo criativo) acreditam tanto na condução do cineasta enquanto narrador em off quanto na força dos encontros com a mãe, da recordação gentil da infância (o hilário trauma com o “desaparecimento” do Meu Pequeno Pônei rosa), da captação das geografias de Bahia e Pernambuco, e do encontro com Exus indicando o caminho ao viajante. Por isso, o resultado abraça sem medo a duração superior a duas horas, que inclusive se estende bastante rumo à conclusão (combinando uma sucessão de cenas com aparência de desfecho). O terço final inclui deambulações, bifurcações, retornos à França e passeios pelo rio Sena a bordo de um bâteau mouche. Leva-se o tempo necessário para incorporar todos os recursos estimados valiosos, privilegiando uma intricada rede de significados à concisão do discurso.
Tamanho apreço pelo olhar sociológico implica numa interessantíssima aproximação entre a violência patriarcal aplicada às mulheres e o desprezo pelo feminino percebido nos homens não-heterossexuais. O diretor cogita sua possibilidade de herdar a “maldição” familiar que afeta somente as mães, filhas e esposas. Ao rever fotografias de infância, descreve-se como “criança viada”, para desconforto da mãe e tia. Existe uma reivindicação orgulhosa da feminilidade, ou pelo menos de uma não-normatividade. As mulheres cis e o artista queer se identificam pela segregação, perseguição e senso de não-pertencimento — visto que a sexualidade constituiu o motivo pelo qual Torres partiu do Brasil.
Por fim, Aurora reúne méritos raramente coincidentes, por ser engraçado e comovente, leve e grave, individual e coletivo, íntimo e público. O interesse dos criadores parece residir justamente neste espaço intermediário entre definições — na capacidade de transição entre elas. Além de dissipar as armadilhas da acomodação estética comum às autobiografias familiares, o longa-metragem foge a outro perigo evidente: aquele do filme terapêutico, realizado unicamente para sanar feridas e encerrar processos de luto do(a) criador(a) e, diante do qual, o espectador é colocado na incômoda postura de invasor ou fetichista. Torres possui claro distanciamento a respeito das tragédias na própria família. Assim, filma uma reflexão, ao invés de uma emoção. Ainda encerra sua narrativa de maneira otimista, acreditando em pontes unindo os mundos. Um cinema da empatia, enfim.