Baixo Centro (2018)

Corpo e cidade

título original (ano)
Baixo Centro (2018)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
80 minutos
direção
Ewerton Belico, Samuel Marotta
elenco
Marcelo Souza e Silva, Alexandre de Sena, Cris Moreira, Renan Rovida, Bárbara Colen, Katia Aracelle, Diego Bagagal
visto em
Cinemas

Os personagens deste filme estão em perpétuo movimento. Correm ao ponto de ônibus, sobem ruas e vielas, atravessam avenidas vazias durante a madrugada — a narrativa inteira se desenvolve à noite. Nunca sabemos ao certo para onde vão, e eles tampouco parecem ter um destino preciso. Conversam ao longo do deslocamento ou, ocasionalmente, sentados à beira da rua e em alguma praça de Belo Horizonte. As figuras saem do nada e chegam a lugar nenhum. Transitam pelo centro e pela periferia, porém jamais finalizam seus dias em casa, nem cumprem obrigações pessoais e profissionais. Movem-se pelo princípio do prazer.

Em paralelo eles contam, uns aos outros, histórias de mobilidade. Uma jovem descreve o conflito do qual saiu “sangrando, andando a esmo. Mas eu não queria voltar. Não voltei”. Outro homem, caído num pântano, “saiu andando. Fugiu. Tá fugindo até hoje”. Um terceiro passa o “dia inteiro andando de buraco em buraco”. Até as figuras meramente evocadas se definem pela tendência a continuar em perpétua atividade. Elas nunca possuem objetivo preciso em suas andanças e fugas. Colocam-se em marcha porque, ao que tudo indica, nada mais teriam a fazer.

Baixo Centro se articula entre a melancolia de uma rotina imutável e o medo de um perigo invisível. Os personagens cabisbaixos declamam poemas a si próprios, murmuram pequenas histórias e travam minúsculos encontros amorosos, de caráter efêmero. Pertencem às classes populares, entretanto, os laços sociais (profissão, filiação a grupos e instituições) são retirados de perspectiva. Deixam a impressão de traçarem percursos semelhantes todos os dias, conhecendo exatamente seu terreno — razão pela qual podem apontar a um desconhecido o único trecho suficientemente iluminado de uma viela, onde podem se sentar antes da parte escura demais. 

Um cinema urbano que dispensa tanto os determinismos típicos do drama social quanto a tentação de construir uma periferia estetizada.

Em contrapartida, algo aponta a possíveis conflitos, de origem inexplicada. Os protagonistas citam, por alto, a “guerra” nos bairros e o medo da polícia. No entanto, tais embates não se concretizam nas festas e ruas. Robert (Alexandre de Sena) menciona a existência de uma dívida que o persegue. O fotógrafo Djamba (Marcelo Souza e Silva) anda ao som de uma trilha de sonora tão potente e perturbadora que o sujeito parece se encaminhar às últimas horas de sua vida. Algo sinistro se desenha na trajetória destas figuras — acontecimento este que será concretizado unicamente na cena final.

Antes disso, mal enxergamos rostos, ou qualquer conflito propriamente dito (no sentido clássico do termo). O primeiro close-up, digno deste nome, surge após vinte minutos de narrativa. Antes disso, os diretores Ewerton Belico e Samuel Marotta preferem mergulhar os personagens na noite, em planos abertos que favorecem a arquitetura dos becos e ruas, com precioso cuidado de composição. Cada via que atravessam é acompanhada de um movimento de câmera meticuloso, na velocidade e sentido dos passos, e nada mais do que isso. A geografia se torna um personagem tão construído quanto os jovens que a ocupam. 

Talvez o elemento mais chamativo deste longa-metragem, para o bem e para o mal, constitua o trabalho sonoro. Os criadores optam por um som “sujo”, no qual se percebe fortemente os barulhos das conversas e do espaço urbano. Isso favorece a impressão de naturalismo, em oposição a tantos projetos clássico-narrativos, para os quais a clareza das falas vem em primeiro lugar. Já a trilha sonora se impõe em volume altíssimo, com tamanha potência que insiste em chamar atenção para si mesma. A aparente languidez da história se contrasta com as intervenções violentas de músicas e ruídos locais. 

Ora, os diálogos são fortemente prejudicados pelas demais pistas sonoras. Muitas falas se tornam incompreensíveis, soterradas pela algazarra de algum bar, ou pela música acrescentada em pós-produção. O começo da conversa entre Teresa (Cris Moreira) e Luisa (Bárbara Colen), assim como a maioria das reflexões de Djamba, se perdem por completo. É difícil determinar em que medida correspondem a escolhas deliberadas dos autores (preferindo uma ruminação interiorizada, retórica, que esvaziaria o significado das palavras), ou então de deficiências na captação de som direto e na mixagem. O problema também pode residir na cópia disponibilizada à imprensa. De qualquer maneira, assim como os personagens vão, sem sabermos para onde, eles também falam (em muito momentos) sem compreendermos o que dizem.

Baixo Centro sustenta uma aparência de liberdade e despojamento, como se não fosse obrigado a transmitir mensagens, objetivos precisos, relações de causa e consequência, conflitos ou linearidade (no sentido de cronologia). As cenas poderiam ser dispostas em ordem distinta, sem real prejuízo ao resultado. Costuram-se pela unidade do cenário e do período noturno, enquanto as divagações carregam caráter universal e atemporal: “Não havia nada no começo, eu acho”, cogita Luisa. Ela abraça um rapaz encontrado por acaso (Renan Rovida), porém, os corpos logo se separam. Robert e Teresa iniciam um contato misto entre sexo, brincadeira e briga. Também se afastam. Nada perdura nesta leve crônica das impermanências — analisar as cenas em termos de amores, amizades e traumas seria um exagero de interpretação.

No final, os cineastas oferecem uma obra tão leve quanto coesa. Embora o final aponte a uma leitura possivelmente trágica, o evento restará fora das imagens, sugerido pelo som estrondoso. Belico e Marotta abraçam uma forma de cinema urbano que dispensa tanto os psicologismos e determinismos típicos do drama social (tal personagem sofre porque vem de família pobre, porque é explorado no trabalho, etc.) quanto a tentação de construir uma periferia estetizada, hermética, enquanto exemplo simbólico de um discurso maior. Os personagens nunca são instrumentalizados para a defesa de uma pauta específica — eles representam tão somente a si próprios. Corpo e cidade. 

Pode-se falar em personagens-fantasmas, marginais desconectados do centro. São amantes que não amam e amigos que pouco conversam, gerando primeiros encontros que não resultam em segundas oportunidades. Terminam seus percursos como começaram. Ironicamente, um único personagem terá concluído seu caminho, no sentido de chegar a algum lugar — e logo ali, no conflito clássico que encerra a narrativa, a maioria dos dramas tradicionais começaria a sua história. Baixo Centro prefere existir para além da construção clássico-narrativa, apartado de um cinema de explicações, reivindicações e grandes causas. Em oposição aos filmes-de-tema (sobre o racismo, sobre a miséria, sobre a luta de classes), este talvez seja um filme em oposição a certa tendência do cinema brasileiro atual.

Baixo Centro (2018)
7
Nota 7/10

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