Grace Tomada Única (2021)

Eu só queria contar a minha história

título original (ano)
One Take Grace (2021)
país
África do Sul
gênero
Documentário, Drama
duração
90 minutos
direção
Lindiwe Matshikiza
Elenco
Mothiba Grace Bapela
visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

“Tudo o que eu queria era que minha história fosse contada. Eu precisava contar minha história, para dar esperança às pessoas”. Em visita ao Brasil especialmente para o Olhar de Cinema, a atriz, roteirista e produtora sul-africana Mothiba Grace Bapela frisou este aspecto como principal motivação para uma árdua luta, de dez anos, até conseguir viabilizar o longa-metragem documental a respeito de sua vida. Ela afirma ter batalhado contra a falta de recursos, e ter perdido num assalto o computador onde se encontravam as imagens do filme.

Esta noção sempre foi bastante curiosa dentro das criações cinematográficas. Por que algumas histórias precisariam ser contadas? O que faz de uma vivência mais merecedora de representação do que outra? Mesmo que a obra venha, de fato, a inspirar os espectadores, por que seria função da arte transmitir esperança? Os intuitos são benevolentes, é claro. No entanto, nota-se, por parte da artista, a compreensão da arte enquanto veículo moral acima de tudo.

Essa percepção justifica a longa história que parte da adolescência à fase adulta, quando Bapela já é avó. Ela confessa os maus-tratos com patrões, as humilhações, a fuga de casa, o estupro sofrido por dois homens, o dia em que descobriu a cabeça de um rapaz negro dentro de uma geladeira. Confessa ter dificuldades no amor, e menciona a dor de, após anos trabalhando como empregada doméstica, voltar a usar exatamente o uniforme de trabalho ao interpretar uma doméstica. 

Em consequência, as autoras estimam que esta história precise ser contada porque sua heroína sofreu muito, porém conseguiu sobreviver a tantos obstáculos e injustiças. Há um duplo caráter de valorização, através do martírio e da superação graças à força de vontade. A religião está praticamente ausente da trajetória, entretanto, Grace Tomada Única transmite a forte impressão de uma obra cristã — não no sentido de doutrinação, mas de se apropriar de um caso excepcional como lição de algo que poderia servir à vivência de todos. O que seria Jesus senão a exceção exemplar na qual todos deveriam se inspirar?

O pressuposto de cinema efetuado a qualquer preço, custe o que custar, justifica tanto a aparência de urgência quanto a estética caseira, assumidamente amadora.

O pressuposto de cinema efetuado a qualquer preço, custe o que custar, justifica tanto a aparência de urgência quanto a estética caseira, assumidamente amadora. As câmeras são simples, de baixa qualidade, assim como a captação do som. Às vezes, a protagonista utiliza um pequeno dispositivo de registro em vídeo preso ao pescoço, de modo que seu queixo invade a parte superior do quadro. Quando um bebê se diverte no chão, a câmera treme a esmo, sem saber como enquadrar a cena. Na interação entre mãe e filhos, a câmera disposta sobre a mesa, com uma lente extremamente grande-angular, distorce o resultado e faz com que o móvel ocupe parte considerável da imagem.

Talvez o documentário seja considerado ainda mais valioso por não se importar com enquadramentos precisos, luzes trabalhadas, movimentos fluidos de câmera. Ao deixar a estética em segundo plano, a diretora Lindiwe Matshikiza parece colocar o humanismo, e a importância do tema, enquanto reais protagonistas. Nenhum artifício rebuscado disputa a atenção com a presença desta mulher forte e determinada, capaz de fazer faxina com o bebê amarrado nas costas, e depois levá-lo consigo a um teste de elenco.

Bapela controla o discurso. Do início ao fim, ela apresenta sua jornada, suas ferramentas de superação, suas reflexões pós-traumáticas. A artista domina o som e a imagem, com poucos entraves em seu caminho: ela basicamente transforma o dispositivo cinematográfico em meio necessário a um fim mais nobre, no caso, a veiculação de sua história. Em consequência, o longa-metragem adquire um tom descritivo, didático. Trata-se de um filme no pretérito imperfeito: eu fazia, eu ia, eu gostava, eu tentava, eu resistia. As imagens repetem o som, ilustrando-o da melhor maneira possível.

Na ausência de registros do passado, a mise en scène recorre a alternativas lúdicas. A sequência correspondente ao estupro se transforma numa animação de traços básicos, além de recortes e sobreposições. A abertura e encerramento de teor filosófico e/ou questionador apresentam o rosto da heroína multiplicado por dois ou três, eventualmente escondido atrás de pérolas. As metáforas possuem pouco refinamento visual, e transparecem os recursos limitados da produção. No entanto, revelam o esforço de produzir relevo e atritos entre o realismo e o domínio dos sentimentos.

Infelizmente, no que diz respeito à estrutura, Grace Tomada Única revela uma organização um tanto caótica. Temas importantes são introduzidos de maneira abrupta (o câncer, a vida amorosa), e então abandonados com mesma rapidez. Enquanto isso, as questões envolvendo os filhos, o trabalho como atriz e a fuga de casa na adolescência vem e vão, em fragmentos dispersos. A diretora aparenta evocar memórias afetivas em ordem aleatória, decorrente de uma montagem em fluxo contínuo e indiscriminado.

A apreciação do resultado dependerá muito daquilo que o espectador esperar do cinema, enquanto representação de mundo. Para quem acredita que o cinema serve a contar boas histórias, compreendidas como histórias excepcionais, o projeto cumpre seu intuito com folga. A personagem é certamente apaixonada pelo que diz, e compartilha cada episódio com uma sinceridade ímpar, sem embelezar as conquistas, nem as derrotas. Para quem estima que a linguagem seja fundamental, e que mais importante do que a história, seria a maneira como esta narrativa é contada, a obra deixa a desejar. 

Certo, as dificuldades de viabilização foram inúmeras, no entanto, cabe avaliar o projeto que de fato chega aos olhos do espectador. A condescendência com a obra, considerando-a menor do que outros filmes do festival, está longe de representar uma forma de respeito. Aqui, nem todos os percalços foram driblados de maneira inventiva, utilizando a estética da marginalidade a seu favor. Em alguns aspectos, percebe-se que os criadores filmaram como puderam, da única maneira possível. Enquanto retórica, o gesto se reveste de valor pela fé cênica, graças à crença no potencial transformador da arte. Enquanto estética, tem dificuldade de esconder certos remendos e atalhos. Para o bem ou para o mal, após assistir a Grace Tomada Única, restará Bapela.

Grace Tomada Única (2021)
5
Nota 5/10

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