Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022)

Iñárritu no país das maravilhas

título original (ano)
Bardo, Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades (2022)
país
México
Gênero
Drama, Fantasia
duração
159 minutos
direção
Alejandro González Iñárritu
Elenco
Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani, Ximena Lamadrid, Íker Sánchez Solano, Luis Couturier, Luz Jiménez, Andrés Almeida, Clementina Guadarrama, Jay O. Sanders, Francisco Rubio, Fabiola Guajardo, Ivan Massagué
visto em
Netflix

Este drama com toques de epopeia fantástica gira em torno de um diretor mexicano em crise existencial. O protagonista passa a fazer sucesso nos Estados Unidos, tornando-se o primeiro latino a vencer um cobiçado prêmio norte-americano. Ele vive na Califórnia, com os filhos criados em língua inglesa. Logo, começa a ser questionado pelo pertencimento às raízes: ele teria traído o México e se rendido aos valores estrangeiros? Poderia ser considerado um legítimo artista de seu país, posto que produz as obras em outro local? Se ama sua terra, por que não retorna à cidade de origem?

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades se assume enquanto autobiografia imaginária do diretor, que busca entender seu pertencimento nacional e social enquanto questiona o histórico do México em relação ao país vizinho. Alejandro González Iñárritu escala um ator de idade muito próxima à sua (curiosamente, um espanhol, Daniel Giménez Cacho) para encarnar esta jornada de aceitações e estranhamentos. Ele passa por conflitos com o filho adolescente, com a esposa carinhosa, com os críticos ferozes, com os ícones nacionais, com os políticos mexicanos.

De certo modo, a trama existe para Silverio, o escritor-documentarista. Todas as cenas, sem exceção, giram em torno deste homem. O ator está presente na integralidade das imagens, seja na condição de uma sombra flutuando pelos ares, seja enquanto um jovem reduzido digitalmente, ou ainda mergulhando na piscina e dançando freneticamente numa festa em sua homenagem. O mundo se organiza em função do protagonista, ao redor dele. Nenhum personagem possui vida própria, conflitos autônomos, nem vontades dissociadas do herói. O apresentador de televisão entrevista apenas Silverio; a esposa discorre sobre os dilemas do artista, a filha mais velha condiciona seus próximos passos profissionais ao pai.

Seria fácil reduzir a leitura do projeto a uma obra egocêntrica, de vaidades, sobretudo no período em que um punhado de grandes diretores de meia-idade decidiram olhar para seu histórico de vida, de maneira tão carinhosa quanto condescendente (Licorice Pizza, Armageddon Time, Os Fabelmans, Belfast). Afinal, a narrativa se move pelas conquistas deste personagem, ao invés de suas eventuais falhas. Ele viveria uma condição trágica ao ser perseguido pelo sucesso, alcançado pela inveja, ciúme e visibilidade que atraiu para si. O protagonista nunca faz nada efetivamente errado, soando apenas um tanto relapso com os filhos e amigos — tempo em que esteve trabalhando, insiste o roteiro.

Pela autoconsciência com aparência de sinceridade, o cineasta se desculpa, assume suas falhas, e adquire uma espécie de passe para dedicar três horas às suas dúvidas íntimas.

No entanto, Iñárritu antecipa estas críticas ao decorrer da trama, incorporando suas respostas à boca de Silverio, de modo a se blindar de ataques fáceis. O entrevistador e crítico insiste que o trabalho do protagonista seria condescendente, sem inspiração, autocentrado, e que o criador teria dificuldade em abordar algo diferente de si próprio. Outras vozes cogitam a possível hipocrisia de ter enriquecido às custas de histórias sobre pessoas pobres de seu país, e de ter trocado a nação que supostamente ama pela pátria vizinha. O autor está ciente de tudo isso, e deseja continuar.

Assim, pela autoconsciência com aparência de sinceridade, o cineasta se desculpa, assume suas falhas, e adquire uma espécie de passe para dedicar três horas às suas dúvidas íntimas (duração que foi reduzida após as críticas desfavoráveis em festivais internacionais). O mea culpa também pode soar, em chave oposta, como uma fala cínica, autocondescendente, do tipo “digam o que quiser, eu continuarei fazendo exatamente aquilo que desejo”. É curioso que os mesmos procedimentos possam ser lidos como presunção ou humildade, como agressivos ou pacíficos, dependendo do ponto de vista.

Esteticamente, Iñárritu aprofunda a paixão pelos planos-sequência e pelas lentes grande-angulares, utilizadas para enveredar, de vez, na fantasia. As cenas se articulam por pequenas afinidades poéticas (os peixes no metrô), ou por uma sensação perene de melancolia (as ruas vazias) e terror (o bebê que se nega a nascer). É possível enxergar nestes procedimentos um paralelo com as picardias de Michel Gondry ou Tim Burton no auge de suas carreiras, porém com um suporte megalomaníaco, menos lúdico e mais ostensivo, imponente. 

A obra introduz incontáveis cenas grandiosas em tom grave, de quem se leva a sério e acredita fornecer ao espectador profundas reflexões acerca da humanidade. Desde a duração extensa às citações clássicas (que vão de Bergman a Antonioni), passando pelo subtítulo retórico, tudo aponta à noção de autoimportância, como se a reflexão psicológica e filosófica precisasse se atrelar ao teor sepulcral. Ainda que permita algumas risadas decorrentes do absurdo, o projeto jamais nos convida a rir de Silverio, tampouco com Silverio. O aspecto inchado prejudica a fruição de uma obra cuja solenidade poderia se equilibrar por eventuais variações de tom e textura.

Pelo menos, ninguém reclamará de falta de coerência interna em Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades. Os criadores optam por um estilo de imagem, de narrativa e atuações, e o preservam, imperturbáveis, até o final. A linearidade pode beirar a monotonia — algo irônico para uma narrativa surrealista —, no entanto, a principal qualidade do procedimento decorre da repetição, ou expansão, de suas metáforas. A imagem dos peixes retorna duas, três vezes, revestindo-se de novos significados. Os corpos pelo chão, os saltos deixando sombras na planície vazia, o recém-nascido rebelde e o pesadelo da emissão de televisão são vistos em duplicado, por novas perspectivas, entre o sonho e o real. 

Estas sequências nos permitem compreender melhor o herói, e também nos perder na proposta voluntariamente labiríntica do autor. Ao final, o que ele teria realmente a dizer acerca de temas tão complexos quanto a identidade nacional, a soberba dos artistas de sucesso e a perda de valores em regime capitalista? Talvez diga pouco, para além da constatação do problema. Iñárritu contenta-se em elaborar as boas perguntas, deixando ao espectador, através do tom lacônico do desfecho, a tarefa de tirar suas próprias conclusões. Em outras palavras, o longa-metragem não foge às questões espinhosas, embora prefira se manter à distância de possíveis respostas.

No papel principal, Daniel Giménez Cacho oferece uma boa prestação, no sentido de fazer o menos possível. Afinal, os conflitos ocorrem ao redor de Silverio, mas são raramente provocados por ele — o homem nem sequer deseja ir à própria festa de entrega do prêmio. Por isso, o ator oferece o corpo presente, o olhar devidamente ambíguo, uma fala que navega entre a certeza tranquila e uma firmeza arrogante. Ele parece frágil e potente, assertivo e inseguro, em chaves moderadas, pequenas. O foco aqui não se encontra neste homem, e sim no “país das maravilhas” criado pelo diretor mexicano. Como no texto de Lewis Carroll, a viagem e a pirotecnia em torno de Alice interessam mais do que a própria menina.

Por fim, Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades não se mostra nem tão catastrófico e insuportável quanto gostariam seus detratores, e nem tão genial e questionador quanto pretendia o diretor. Talvez o aspecto mais triste de uma obra tão histriônica seja descobri-la mediana, morna. Há competência em várias áreas, sobrecarregadas pelo peso autoral e por uma espécie de política do consenso — o filme nunca toca em feridas profundas do México, nem dos Estados Unidos. Nem mesmo a linguagem aparenta inovadora a quem assistiu aos projetos anteriores do diretor. Para quem almeja a grandeza e a provocação, nada soa mais ofensivo do que ser apenas razoável.

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022)
6
Nota 6/10

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