Este drama com toques de epopeia fantástica gira em torno de um diretor mexicano em crise existencial. O protagonista passa a fazer sucesso nos Estados Unidos, tornando-se o primeiro latino a vencer um cobiçado prêmio norte-americano. Ele vive na Califórnia, com os filhos criados em língua inglesa. Logo, começa a ser questionado pelo pertencimento às raízes: ele teria traído o México e se rendido aos valores estrangeiros? Poderia ser considerado um legítimo artista de seu país, posto que produz as obras em outro local? Se ama sua terra, por que não retorna à cidade de origem?
Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades se assume enquanto autobiografia imaginária do diretor, que busca entender seu pertencimento nacional e social enquanto questiona o histórico do México em relação ao país vizinho. Alejandro González Iñárritu escala um ator de idade muito próxima à sua (curiosamente, um espanhol, Daniel Giménez Cacho) para encarnar esta jornada de aceitações e estranhamentos. Ele passa por conflitos com o filho adolescente, com a esposa carinhosa, com os críticos ferozes, com os ícones nacionais, com os políticos mexicanos.
De certo modo, a trama existe para Silverio, o escritor-documentarista. Todas as cenas, sem exceção, giram em torno deste homem. O ator está presente na integralidade das imagens, seja na condição de uma sombra flutuando pelos ares, seja enquanto um jovem reduzido digitalmente, ou ainda mergulhando na piscina e dançando freneticamente numa festa em sua homenagem. O mundo se organiza em função do protagonista, ao redor dele. Nenhum personagem possui vida própria, conflitos autônomos, nem vontades dissociadas do herói. O apresentador de televisão entrevista apenas Silverio; a esposa discorre sobre os dilemas do artista, a filha mais velha condiciona seus próximos passos profissionais ao pai.
Seria fácil reduzir a leitura do projeto a uma obra egocêntrica, de vaidades, sobretudo no período em que um punhado de grandes diretores de meia-idade decidiram olhar para seu histórico de vida, de maneira tão carinhosa quanto condescendente (Licorice Pizza, Armageddon Time, Os Fabelmans, Belfast). Afinal, a narrativa se move pelas conquistas deste personagem, ao invés de suas eventuais falhas. Ele viveria uma condição trágica ao ser perseguido pelo sucesso, alcançado pela inveja, ciúme e visibilidade que atraiu para si. O protagonista nunca faz nada efetivamente errado, soando apenas um tanto relapso com os filhos e amigos — tempo em que esteve trabalhando, insiste o roteiro.
Pela autoconsciência com aparência de sinceridade, o cineasta se desculpa, assume suas falhas, e adquire uma espécie de passe para dedicar três horas às suas dúvidas íntimas.
No entanto, Iñárritu antecipa estas críticas ao decorrer da trama, incorporando suas respostas à boca de Silverio, de modo a se blindar de ataques fáceis. O entrevistador e crítico insiste que o trabalho do protagonista seria condescendente, sem inspiração, autocentrado, e que o criador teria dificuldade em abordar algo diferente de si próprio. Outras vozes cogitam a possível hipocrisia de ter enriquecido às custas de histórias sobre pessoas pobres de seu país, e de ter trocado a nação que supostamente ama pela pátria vizinha. O autor está ciente de tudo isso, e deseja continuar.
Assim, pela autoconsciência com aparência de sinceridade, o cineasta se desculpa, assume suas falhas, e adquire uma espécie de passe para dedicar três horas às suas dúvidas íntimas (duração que foi reduzida após as críticas desfavoráveis em festivais internacionais). O mea culpa também pode soar, em chave oposta, como uma fala cínica, autocondescendente, do tipo “digam o que quiser, eu continuarei fazendo exatamente aquilo que desejo”. É curioso que os mesmos procedimentos possam ser lidos como presunção ou humildade, como agressivos ou pacíficos, dependendo do ponto de vista.
Esteticamente, Iñárritu aprofunda a paixão pelos planos-sequência e pelas lentes grande-angulares, utilizadas para enveredar, de vez, na fantasia. As cenas se articulam por pequenas afinidades poéticas (os peixes no metrô), ou por uma sensação perene de melancolia (as ruas vazias) e terror (o bebê que se nega a nascer). É possível enxergar nestes procedimentos um paralelo com as picardias de Michel Gondry ou Tim Burton no auge de suas carreiras, porém com um suporte megalomaníaco, menos lúdico e mais ostensivo, imponente.
A obra introduz incontáveis cenas grandiosas em tom grave, de quem se leva a sério e acredita fornecer ao espectador profundas reflexões acerca da humanidade. Desde a duração extensa às citações clássicas (que vão de Bergman a Antonioni), passando pelo subtítulo retórico, tudo aponta à noção de autoimportância, como se a reflexão psicológica e filosófica precisasse se atrelar ao teor sepulcral. Ainda que permita algumas risadas decorrentes do absurdo, o projeto jamais nos convida a rir de Silverio, tampouco com Silverio. O aspecto inchado prejudica a fruição de uma obra cuja solenidade poderia se equilibrar por eventuais variações de tom e textura.
Pelo menos, ninguém reclamará de falta de coerência interna em Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades. Os criadores optam por um estilo de imagem, de narrativa e atuações, e o preservam, imperturbáveis, até o final. A linearidade pode beirar a monotonia — algo irônico para uma narrativa surrealista —, no entanto, a principal qualidade do procedimento decorre da repetição, ou expansão, de suas metáforas. A imagem dos peixes retorna duas, três vezes, revestindo-se de novos significados. Os corpos pelo chão, os saltos deixando sombras na planície vazia, o recém-nascido rebelde e o pesadelo da emissão de televisão são vistos em duplicado, por novas perspectivas, entre o sonho e o real.
Estas sequências nos permitem compreender melhor o herói, e também nos perder na proposta voluntariamente labiríntica do autor. Ao final, o que ele teria realmente a dizer acerca de temas tão complexos quanto a identidade nacional, a soberba dos artistas de sucesso e a perda de valores em regime capitalista? Talvez diga pouco, para além da constatação do problema. Iñárritu contenta-se em elaborar as boas perguntas, deixando ao espectador, através do tom lacônico do desfecho, a tarefa de tirar suas próprias conclusões. Em outras palavras, o longa-metragem não foge às questões espinhosas, embora prefira se manter à distância de possíveis respostas.
No papel principal, Daniel Giménez Cacho oferece uma boa prestação, no sentido de fazer o menos possível. Afinal, os conflitos ocorrem ao redor de Silverio, mas são raramente provocados por ele — o homem nem sequer deseja ir à própria festa de entrega do prêmio. Por isso, o ator oferece o corpo presente, o olhar devidamente ambíguo, uma fala que navega entre a certeza tranquila e uma firmeza arrogante. Ele parece frágil e potente, assertivo e inseguro, em chaves moderadas, pequenas. O foco aqui não se encontra neste homem, e sim no “país das maravilhas” criado pelo diretor mexicano. Como no texto de Lewis Carroll, a viagem e a pirotecnia em torno de Alice interessam mais do que a própria menina.
Por fim, Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades não se mostra nem tão catastrófico e insuportável quanto gostariam seus detratores, e nem tão genial e questionador quanto pretendia o diretor. Talvez o aspecto mais triste de uma obra tão histriônica seja descobri-la mediana, morna. Há competência em várias áreas, sobrecarregadas pelo peso autoral e por uma espécie de política do consenso — o filme nunca toca em feridas profundas do México, nem dos Estados Unidos. Nem mesmo a linguagem aparenta inovadora a quem assistiu aos projetos anteriores do diretor. Para quem almeja a grandeza e a provocação, nada soa mais ofensivo do que ser apenas razoável.