Bem-Vindos a Bordo (2021)

A normalidade é absurda

título original (ano)
Rien à Foutre (2021)
país
França, Bélgica
gênero
Comédia, Drama
duração
115 minutos
direção
Julie Lecoustre, Emmanuel Marre
elenco
Adèle Exarchopoulos, Alexandre Perrier, Mara Taquin, Arthur Egloff, Tamara Al Saadi, David Martinez Pinon, Soraya Amate, Martina Amato
visto em
Cinemas

A cena inicial apresenta o rosto de Cassandre (Adèle Exarchopoulos) escutando ordens dos superiores na empresa onde trabalha como comissária de bordo. Ela sustenta uma expressão parcialmente atenta, tentando ocultar o desinteresse pela fala da mulher fora de quadro. A câmera efetua uma aproximação lentíssima rumo ao rosto da personagem (em zoom-in), destacando apenas para o espectador esta jovem, entre tantas outras personagens de ocupação semelhante. Entendemos se tratar da protagonista, e também que ela não possua nenhum traço especial em relação às colegas — exceto pelo fato de ter sido escolhida para liderar o ponto de vista.

Bem-Vindos a Bordo é constituído dessas piscadelas ao espectador, estes instantes de cumplicidade e humor compartilhado apenas conosco, mas não com as demais figuras em cena. Os diretores Julie Lecoustre e Emmanuel Marre nos posicionam na função de melhores amigos, espiando a garota em seus melhores e piores momentos enquanto assistente de bordo numa empresa de baixo custo, que não valoriza o trabalho das funcionárias. No entanto, por dedicar todas as horas do dia ao trabalho, ela consente, cumpre as ordens que lhe dão, e adequa sua maneira de se portar às exigências dos patrões.

Para o humor escrachado dos nortes-americanos, teria sido mais fácil exagerar os traços da heroína, seja em moldes atrapalhados demais, como Bridget Jones, seja psicorrígida como a Bree de Desperate Housewives. Ora, para o filme, Cassandre representa uma garota de inteligência, beleza e dedicação familiar e profissional medianas. O longa-metragem não deseja parodiar os extremos, nem ridicularizar alguém de traços exagerados. Pelo contrário, ri do cotidiano, do comum. 

É facílimo se identificar com a menina que marca encontros casuais com rapazes via aplicativo, e depois dança no clube sem real interesse pela música, nem pelas companhias. No entanto, a câmera nunca a abandona, pelo contrário, insiste que existe algo especial na repetição, no cansaço, na longuíssima caminhada até o apartamento em Lanzarote junto a outras comissárias, na interminável esteira do aeroporto e na repetição aos passageiros do voo: “Chá? Café? Salgadinhos?”. Os autores percebem o absurdo cômico desta rotina, percebida como normal para todas as pessoas ao redor, exceto a protagonista.

Adèle Exarchopoulos encarna o rosto e o corpo desta iniciativa. O filme nunca funcionaria tão bem sem uma atriz capaz desta mistura de espontaneidade, desleixo e também uma introspecção comovente quando necessário.

Por isso, ela nos entende, e nós a entendemos. Lecoustre e Marre demonstram-se exímios cronistas do cotidiano, criando conversas plenamente verossímeis entre amigos (de aparência improvisada, apesar do tema estimulado e da mise en scène controlada), quiproquós diários que nunca se transformam em grandes reviravoltas, nem espetáculo (os encontros casuais à noite, as reprimendas dos chefes). Os cineastas dedicam espaço às pernas não depiladas, ao cabelo amarrado de maneira displicente, ao apartamento vazio, impessoal e bagunçado, onde moram pessoas que não habitam realmente aquele espaço.

Através desta figura, o longa-metragem desenha a imagem do não-pertencimento. Cassandre não se sente espanhola apesar de morar na ilha deste país — além da língua francesa materna, possui apenas conhecimentos básicos de inglês. Ela conhece pouco dos países para onde viajou, e evita voltar para casa, onde lhe espera o pai viúvo e a memória da mãe recém-falecida. O permanente deslocamento, as festas e contatos via aplicativo buscam esconder a solidão e o vazio. Há um aspecto muito triste por trás desta comédia de procedimentos ridículos, exagerados e desumanos das empresas.

A crônica do capitalismo nas empresas aéreas traz os momentos mais mordazes do filme. Cada bronca, reunião ou alerta dos chefes está impregnado de ironia, de uma frieza disfarçada de polidez, um desinteresse pela subjetividade disfarçado de profissionalismo. “Aqui na frente, ninguém se importa com seus problemas pessoais”, alerta a mulher responsável por formar novas chefes de cabine. Por isso, é preciso treinar o sorriso (30 segundos pelo menos; uma tortura), a fala gentil, a boa aparência. “Você faz academia? A elegância é importante para nós”, alerta um empregador. A superficialidade, o machismo, a objetificação e o assédio moral se encontram num horizonte muito próximo.

Adèle Exarchopoulos encarna o rosto e o corpo desta iniciativa. O filme nunca funcionaria tão bem sem uma atriz capaz desta mistura de espontaneidade, desleixo e também uma introspecção comovente quando necessário — às vezes, tudo isso na mesma cena, caso das sequências da ligação telefônica na rua e da busca pelo carro avariado. Ela oferece uma garota palpável, sem qualidades nem defeitos evidentes, capaz de passar por uma amiga qualquer. Assim como a direção, a atriz nunca julga moralmente Cassandre, nem a considera vítima. A atriz consegue controlar tons e equilibrar gêneros (a comédia atenuada, o drama discreto, o descontentamento entre o cansaço, o tédio e o desinteresse).

A câmera acompanha de maneira quase fusional esta perspectiva letárgica de mundo, fazendo o possível para sublinhar as artificialidades. A esteira no aeroporto é filmada como num filme de ficção científica, com grandes angulares e uma trilha sonora jocosa, que parece situar Cassandre e a colega numa nave espacial. As cenas noturnas com colegas adquirem um flash forte na cara dos atores, provocando um efeito inusitado, fortíssimo, de aparência tão improvisada quanto estetizante (similar a muitas fotografias em still). Já o som prefere um aspecto sujo, privilegiando conversas e ruídos ao redor à clareza das falas. O filme abraça o caos de um mundo em desordem, representado pelas multidões nas ruas e pelos passageiros inconvenientes dos voos.

Infelizmente, quando a jovem sai do ambiente das linhas aéreas e se muda temporariamente para a casa do pai, a narrativa sofre um baque forte, do qual nunca se recupera por completo. A ironia e o sarcasmo desaparecem, assim como o vigor nas escolhas de imagem e som. Chegando ao espaço do luto, Lecoustre e Marre preferem a sobriedade como sinal de respeito, enveredando pelo drama tradicional. A atriz segue em atuação excelente, enquanto o jantar com o pai (Alexandre Perrier) e a irmã (Mara Taquin) oferecem bons momentos de composição. No entanto, o roteiro jamais consegue amarrar o interesse profissional de Cassandre com a vida familiar.

O aspecto mais fraco provém justamente da conclusão. O texto permite a entrada da Covid-19 no cenário, revelando o elenco de máscara em Doha, mantendo o distanciamento social (certamente, aproveitando a situação real em que se encontravam o país e as pessoas). Este elemento forte surge sem contexto nem impacto na narrativa, que se interrompe abruptamente, quase abandonando sua heroína no país distante. O projeto aparenta ter sido abortado devido às dificuldades práticas impostas pela pandemia, decidindo então simplesmente se encerrar com o material preexistente. É uma pena, para uma crônica que se desenvolvia com tamanha atenção aos diálogos, à personagem e aos cenários.

Vale ressaltar, igualmente, que o filme perde no Brasil a provocação de seu título original. Em francês, Rien à Foutre contém um palavrão, algo como “Foda-se”, “Nem fodendo”, “Estou pouco me fodendo”. O título internacional, em inglês, manteve o palavrão e o sentido, com Zero Fucks Given, que resume tanto a rebeldia quanto o humor da trama. Ora, no nosso país, os distribuidores preferiram o genérico e inofensivo Bem-Vindos a Bordo, que pode sugerir qualquer aventura ligada aos aviões, retirando a provocação, o humor e o ponto de vista íntimo de Cassandre. Mas estes aspectos não apagam os méritos de uma comédia refinada na direção e no discurso, apresentando seu ponto de vista político sem perder de vista o humanismo da protagonista. Os diretores criam fortes expectativas para seus próximos trabalhos, sobretudo pelo talento na direção de atores.

Bem-Vindos a Bordo (2021)
7
Nota 7/10

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