Bernadette: A Mulher do Presidente (2024)

A política do matrimônio

título original (ano)
Bernadette (2024)
país
França
gênero
Comédia
duração
92 minutos
direção
Léa Domenach
elenco
Catherine Deneuve, Denis Podalydès, Michel Vuillermoz, Sara Giraudeau, Laurent Stocker, François Vincentelli, Lionel Abelanski, Maud Wyler
visto em
Cinemas

Bernadette é um filme arriscado. A diretora Léa Domenach propõe uma comédia progressista a respeito de um casal conservador, fundamental à política francesa: o ex-presidente Jacques Chirac e a ex-primeira-dama, Bernadette Chirac. O fato de se voltar a protagonistas de posicionamento ideológico oposto à direção constituiria um prato cheio para a chacota, a ridicularização, o ataque a quem pensa diferente. Ora, a primeira surpresa reside no respeito com que se retrata, sobretudo, esta mulher.

A narrativa toma a precaução inicial de sublinhar o tom de fábula, confessando ao espectador, em duas oportunidades, as licenças em relação ao real. Obviamente, o roteiro é baseado em fatos, até por incorporar outras figuras importantes do cenário nacional (Nicolas Sarkozy, Dominique de Villepin, Xavier Bertrand). Mesmo assim, toma a liberdade de imaginar o que ocorreria na vida íntima, longe dos holofotes e das câmeras. Como a mulher deixada em segundo plano pelo marido teria se tornado tão popular?

A tese da direção consiste na convergência entre rebeldia conjugal e emancipação feminina. Bernadette teria mudado a imagem ao público tanto para valorizar seu trabalho quanto para irritar o marido machista, cercado unicamente por homens enquanto menospreza qualquer opinião da esposa — ela mesma, vale lembrar, uma deputada eleita, experiente na política municipal há décadas. O longa-metragem se atém ao próprio conceito de uma primeira-dama: qual função teria uma mulher obrigada a desempenhar certas funções (ligadas à caridade, às amenidades) sabendo que ela nem sequer concorreu participou do pleito? Como pode “herdar” um posto devido ao casamento com o homem eleito? Esta obrigatoriedade não seria, em si própria, um ato de machismo?

A diretora satiriza a política, ao invés dos políticos. Encontra motivos para rir do sistema e de suas hipocrisias, não especificamente das pessoas que o compõem.

Por isso, a ousadia do discurso consiste em utilizar esta função materna e “doméstica” do cargo presidencial a favor de Bernadette. Ela se vê obrigada a trabalhar em ações de caridade? Ótimo, então traz personalidades que lhe agreguem popularidade. Precisa se vestir de maneira “presidenciável”? Escolhe o estilista mais ousado para o cargo. A relação da heroína com a política e o marido fascina pela ambiguidade: ela deseja os benefícios e atenção garantidos pelo status presidencial, porém repudia o machismo do homem com quem se casou, e que nunca demonstra o mínimo sinal de afeto em relação à esposa.

O humor nasce, portanto, do contraste entre a imagem midiática — o casal feliz e solidário — e a realidade de um matrimônio morno entre dois estrategistas políticos de visões e temperamentos opostos. A filha do casal, que executa a função de assistente, também se divide entre manter o posicionamento machista, quando assume a função profissional, e manifestar piedade pela mãe, quando adota ao comportamento de filha. O principal interesse do projeto reside no embate exagerado e cômico entre o público e privado, numa profissão que obviamente mistura os dois.

Quanto às controvérsias políticas, Domenach consegue afirmar os fatos sem tomar partido nas ações do casal Chirac. Os personagens coadjuvantes listam inúmeros crimes de que ambos foram acusados, lembrando o espectador dos abusos de poder atribuídos aos conservadores franceses. No entanto, jamais retrata nenhum destes gestos em frente às câmeras, posto que o foco se encontra precisamente no avesso íntimo do Palácio do Eliseu. Bernadette estaria ciente de tudo, e sem dúvida, demonstra conivência com os planos do marido. Em contrapartida, o filme nem a ataca, nem a absolve por tais gestos.

Deste modo, a mise en scène evita possíveis acusações de condescendência, ou de atenuar a turbulenta passagem de Chirac pela presidência, enquanto foge à armadilha de demonizá-lo pelo prazer fácil do gesto. A França possui uma tradição consolidada de sátiras e paródias políticas, presentes diariamente nos jornais impressos, nos programas cômicos da televisão, nos livros, séries e filmes. Projetos como este comprovam a abertura e capacidade de uma cinematografia em revisitar sua política sem medo de melindrar qualquer lado mencionado, e evitando o conteúdo exagerado, clickbait, que impera na lógica de redes sociais.

No que diz respeito às atuações, Catherine Deneuve se encarrega do papel mais comedido, envolta por um círculo de excentricidades: em sua espontaneidade (misto de insolência e conservadorismo), ela revela uma sinceridade proibida aos demais personagens. O filme se volta contra a masculinidade branca e burguesa enquanto grupo indistinto e invariavelmente patético: as reuniões de gabinete com assessores e conselheiros revelam de maneira tão clara quanto sutil a incapacidade destes sujeitos tão semelhantes em perceber a pluralidade do país que deveriam representar. 

Em consequência, a atriz faz pouco, apostando em modesta traquinagem no olhar e cansaço nas falas, porém evitando exagerar a comicidade que vem das situações — nunca dos diálogos, nem das caracterizações. Este é um dos aspectos eticamente fundamentais da comédia: a diretora satiriza a política, ao invés dos políticos. Encontra motivos para rir do sistema e de suas hipocrisias, não especificamente das pessoas que o compõem. Por isso, ignora piadas fáceis com a maneira de falar ou se portar de uns e outros. Deixa que a expressão da esposa face ao corpo nu do marido demonstre seu desprezo e desafeto — em excelente cena, aliás.

O final reúne todos os símbolos cômicos dispersos pela narrativa até então: a ambiguidade política de Bernadette na aliança com o desafeto Sarkozy, o retorno do coro em estilo grego, o saldo das promessas nunca cumpridas (com foco no TGV), a lembrança das condenações evitadas. Raríssimos projetos conseguem se apropria de um caso tão específico e conotado historicamente para refletir a respeito das peças da engrenagem política em geral, sem nenhum apego particular pelos fatos. O casal Chirac se converte em ponto de partida para uma reflexão mais ampla, ao invés de ponto de chegada. Talvez a autora tenha realizado um filme com os Chirac, ao invés de um filme sobre os Chirac. Nem o marido, nem a esposa: a melhor estrategista, no final, é Domenach.

Bernadette: A Mulher do Presidente (2024)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.