Blinded by Centuries (2023)

O natural e o artificial

título original (ano)
Blinded by Centuries (2023)
país
Tailândia
linguagem
Experimental
duração
13 minutos
direção
Parinda Mai
elenco
Audrea Wah, Paige Alice Naylor, Curran Cross
visto em
Mostra Quelly 2023

Este curta-metragem parte de uma síntese astuciosa entre os principais questionamentos levantados na sexta edição da Mostra Quelly. Para além da oposição entre ficção e documentário, entre cisgeneridade e transgeneridade, entre política institucional e política dos afetos, existe um embate essencial entre aquilo que pertence à natureza, e o que diz respeito ao artifício.

Indivíduos LGBTQIA+ são considerados por vozes preconceituosas como “antinaturais”. Afinal, duas mulheres cis ou dois homens cis não poderiam, sozinhos, procriar. (Casais hétero cis inférteis também não, mas passemos). A transexualidade, ou a identidade travesti, costuma ser desprezada pelas doutrinas religiosas a partir de motivos semelhantes: estariam desrespeitando a concepção de Deus. Não seria natural readequar o corpo à sua identidade. (Tampouco seria natural pintar os cabelos, fazer procedimentos estéticos, porém, uma vez mais, passemos).

Ora, a produção de curtas-metragens revelada no evento maranhense tem se constituído como uma ode ao artifício. Ao invés de se combater o argumento com provas de que somos, sim, naturais (pinçando, por exemplo, outras espécies no reino animal que manifestam comportamentos homossexuais), ostenta-se com orgulho a possibilidade de ser diferente. Sim, posso mudar meu corpo. Posso ser exagerado, kitsch, estranho, bizarro, provocador. Posso ser “cubista”, conforme afirmava Renata Carvalho.

Transparece em Panteras, Fluidité, Quinze Primaveras, Corpo Sua Autobiografia, As Inesquecíveis e Godasses Parte III: Jamal Phoenix um grande “foda-se” às regras nas quais se tentam inserir indivíduos marginalizados, nas mais distintas culturas. Se dizem que não sou natural, talvez não o seja. Qual o problema? Serei o que quiser, como quiser. O exagero, as estampas de onça, as cenas sangrentas de terror, as poses sobre quadros renascentistas reafirmam a possibilidade do indivíduo em construir a si mesmo. Sejamos o nosso próprio quadro em branco.

Curiosamente, Blinded by Centuries provém da Tailândia, sendo o único curta-metragem asiático da sexta edição da Quelly. Trata-se igualmente do projeto mais distanciado de uma noção explícita do queer enquanto sexualidade e identidade. As figuras em cena, que dançam e se agitam em performances catárticas, podem ser heterossexuais e cisgênero. No entanto, o queer enquanto fuga das normas (do cinema e da sociedade) está plenamente representado na obra. É louvável que os curadores tenham incorporado uma compreensão abrangente do termo.

O roteiro efetua um caminho curioso, do natural ao artificial. Começa com jovens percorrendo florestas e paisagens rurais da Tailândia. A captação digital de baixa qualidade, em luzes superexpostas, impede qualquer idealização bucólica deste cenário. Aos poucos, a câmera se desloca aos centros urbanos. Passeia por laboratórios de manipulação genética. Acompanha a fabricação de uma “Carne 2.0”. “A tecnologia é o novo Deus, porque Deus está morto”, declara a narração em off, conforme visita cavernas virtuais e questiona o valor de frutas transgênicas.

A estética acompanha a viagem geográfica. No início, traz planos abertos, fixos, distanciados, longos. Em seguida, acelera-se, abraçando a montagem frenética, as trilhas sonoras múltiplas, as intervenções digitais de pós-produção. A cineasta salta da observação à intervenção, ou da reflexão ao julgamento moral, exatamente como se faz nas redes sociais. Esta linguagem do tudo em todo o lugar ao mesmo tempo transmite o aspecto de videoclipe apocalíptico, quando o frenesi busca uma forma de explosão (ou seria anestesia?) dos sentidos.

O curta-metragem evita a nostalgia em relação ao passado campestre, enquanto foge à demonização da contemporaneidade tecnológica. Mesmo assim, enxerga os laços nocivos de ambos, sugerindo que o corpo não possui escapatória entre um e outro. Criamos modelos insustentáveis de convivência, representados por uma dança-ritual ao redor de névoas coloridas, enquanto se esmaga uma melancia geneticamente modificada. Os corpos sofrem, porém, se agitam, dançam, porque não podem parar. 

Mai captura com talento o imperativo do movimento, a falsa sedução pelas imagens. Decide revertê-la pelo avesso, adotando um olhar catastrófico, que enxerga nosso mundo enquanto grosseiro, condenado, insalubre. Muitos filmes da seleção adotam os códigos do horror, entretanto, talvez este seja o único propriamente distópico. Por isso, a solução no final consiste em desviar a câmera, retirar o olhar dos jovens que se chacoalham, queimam em uma estufa tal qual plantas manipuladas. O foco se vira ao céu, pela incapacidade de continuar a testemunhar a cena perturbadora. 

Existe uma poesia potente na disposição a enxergar o caos de maneira lúdica, transmitindo-o pela linguagem, via estética. O curta-metragem perturba por seu agenciamento de imagens, pelo uso incomum de iluminação, de cores, de ritmo. O sentido se produz na forma de uma afronta aos padrões clássico-narrativos. A perda de referências e de compreensão do mundo começa, neste caso, pela perda dos sentidos. O fim do mundo, quem diria, também é queer.

Blinded by Centuries (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.