Um personagem observa o outro, que vigia um terceiro, que investiga um quarto. Broker: Uma Nova Chance começa como uma ciranda sombria, em moldes policiais, revelando pouco sobre a dezena de figuras em cena. Quem é a mulher deixando seu filho recém-nascido numa “caixa de bebês” durante a madrugada? Quem são as duas pessoas no carro, que observam a cena em segredo, e por que uma delas é enviada para seguir a mãe criminosa? Onde se encontram os dois homens que recebem o bebê, e o que pretendem com a criança?
Aos poucos, os conflitos se esclarecem. Isso porque o roteiro começa com a ação em pleno andamento, cabendo ao espectador efetuar as conexões necessárias. Percebe-se que Lee (Lee Joo-young) e Su-jin (Doona Bae) são detetives encarregadas de desvendar um esquema de tráfico de crianças, coordenado por Dong-soo (Gang Dong-won), funcionário da igreja que recebe os bebês abandonados, e pelo comparsa Ha Sang-hyun (Song Kang-ho). Moon So-young (Lee Ji-eun), a mãe, representa apenas o motor capaz de proporcionar o flagrante desejado às autoridades.
Há inúmeros elementos morais, éticos e políticos em jogo. No entanto, o diretor e roteirista japonês Hirokazu Kore-eda prefere se focar nos aspectos psicológicos da empreitada. Logo, ninguém questiona a existência de uma “caixa para bebês”, autorizando o abandono legal de recém-nascidos. A lei já foi devidamente assimilada pela população. O tráfico de crianças é certamente ilegal, ainda que bastante comum. Não se sabe ao certo qual pena ou condenação social recairia sobre a mãe, visto que a narrativa evita o aspecto burocrático e jurídico da empreitada.
No lugar das perseguições, buscas frenéticas por pistas e outros elementos do cinema policial, o cineasta oferece tempos dilatados, um ritmo contemplativo e mais propício ao drama. As policiais têm os acusados à vista o tempo inteiro, cabendo apenas esperar a venda ser concluída para efetuarem a detenção da gangue. Lee e Su-jin passam a maioria de suas cenas no interior do carro, observando o mundo lá fora e comendo sanduíches. Elas jamais demonstram nenhuma habilidade especial de investigação. Nunca descobrimos para quem trabalham, sob quais ordens, e se sofrem alguma pressão para concluírem o caso. Ambas funcionam como espectadoras plácidas do crime, em posição análoga àquela do espectador.
O equilíbrio pende ao melodrama conforme a narrativa avança. […] Pelo menos, o humor atenua a exploração emocional.
Em paralelo, os marginais se unem numa família postiça. Kore-eda sempre foi fascinado pelas famílias fragmentadas, recompostas e simbólicas. Ama-se quem está disponível, quem oferece alguma forma de afeto, da melhor maneira possível. Laços afetivos vão muito além do sangue. Por isso, os dois traficantes (que a legendagem brasileira traduz apenas como “intermediários”) se unem à mãe arrependida do bebê, e a um garoto do orfanato em busca de pais. Antes que percebam, estão viajando Coreia adentro, cuidando uns dos outros, dando atenção ao bebê e negociando a venda do mesmo.
Teria sido fácil descrever estes personagens como maldosos arrependidos, ou talvez redimidos pela proximidade com a criança. Muitos filmes hollywoodianos se baseiam em contraventores que, mais cedo ou mais tarde, percebem a importância de seguir o caminho correto. Felizmente, o cineasta evita julgar moralmente estes malandros atrapalhados. Eles se preocupam de fato com o recém-nascido, e demonstram afeto genuíno um pelo outro. Quando percebem que os possíveis compradores possuem motivos escusos para a aquisição do bebê, desistem da transação e procuram novas famílias para entregar a “mercadoria”. O cinismo da ilegalidade se encontra com um carinho que se supõe universal pelos mais fracos.
Este equilíbrio pende ao melodrama conforme a narrativa avança. A temática oferecia elementos mais que suficientes para rechear o longa-metragem. No entanto, o roteiro encontra uma maneira de introduzir doenças potencialmente graves ao bebê, dilemas matrimoniais da sargento, orfanatos exploradores, igrejas coniventes, ameaças de mafiosos, maridos assassinados, esposas querendo roubar o bebê ilegal do marido. O filme corre o sério risco de se apaixonar mais pelas dores dos personagens do que pelos próprios personagens, acentuando os riscos pelo simples prazer de testemunhar o sofrimento alheio.
Pelo menos, o humor atenua a exploração emocional. Song Kang-ho tem se especializado nos papéis do “homem comum”, o malandro de caráter questionável, ainda que movido por um bom coração. Ele desempenha este personagem com segurança, embora o longa-metragem nunca lhe proporcione oportunidades de extravasar os sentimentos. O ator efetua uma bela dupla com Gang Dong-won, que representa o lado ingênuo e doce da gangue.
O filme nos convida a manifestar compaixão por dois sujeitos que vendem bebês ilegalmente, algo inusitado e difícil de obter — porém, facilitado pelo fato que nenhum deles parece ter enriquecido com os atos, o que retira a ganância do horizonte. Além disso, recorre a uma leitura determinista: Ha Sang-hyun e Dong-soon também foram abandonados pelas mães, convivendo de perto com a dinâmica de orfanatos, pais adotivos e a perspectiva de um lar que os acolha. Sugere-se que ambos estejam condenados a reproduzir a dinâmica de (falta de) carinho de sua infância. Não temos como oferecer um amor que nunca recebemos.
Ao final, algumas frases de efeito e recursos excessivamente emotivos podem incomodar. O mantra “Obrigado por ter nascido”, repetido por todos os ocupantes de um quarto de hotel, aproxima-se perigosamente do drama religioso. A dificuldade de dois atores em repetir a frase “Vamos cuidar desse bebê como se fosse o nosso” explicita um desamor evidente demais em todas as cenas até então. A canção Wise Up, popularizada em Magnólia, é citada apenas para elevar o teor melancólico de um conjunto bastante agridoce. Há uma tendência a sublinhar efeitos evidentes.
Mesmo assim, Broker: Uma Nova Chance demonstra uma capacidade acima da média de compor personagens e conduzi-los através de um mundo de marginalidade humanizada e leve. A ideia de que “é preciso uma aldeia para criar uma criança” adquire contornos quase literais na conclusão. Assim, valoriza-se o esforço e as dificuldades das mães, enquanto se oferece uma oportunidade a todos, sem exceção, de se redimirem por seus atos e falas. Kore-eda continua demonstrando uma habilidade ímpar de costurar dramas humanos, embora manifeste a tendência crescente de forçar a mão nas lágrimas.