Cartografia das Ondas (2025)

Brainstorming

título original (ano)
Cartografia das Ondas (2025)
país
Brasil
linguagem
Drama, Fantasia, Documentário
duração
85 minutos
direção
Heloísa Machado
elenco
Gledson Mercês, Heloisa Machado, Indira Nascimento, Julio Adrião, Ariane Souza, Ju Colombo, Priscila Lima, Antônio Pitanga
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

É curioso encontrar um longa-metragem tão focado na construção do roteiro. Cartografia das Ondas menciona o desejo da diretora Heloísa Machado em se tornar roteirista, além de sua crença no direito de criar ficções. Ela pensa nas narrativas que deixará à próxima geração, e discute em off, com o co-roteirista Gledson Mercês, o passo a passo da trama que vemos em tela. Há um caderno de anotações com ideias, além de um mural de rabiscos relacionados à trama. “Mas calma aí, ela se mata?”, ela questiona o colega de criação. “Puteiro — Interna — Dia”, lê a narradora. Enquanto isso, letreiros apresentam as linhas do diálogo, digitadas sob fundo preto, enquanto os atores interpretam suas falas. 

A atenção ostensiva ao filme enquanto “história a contar” possivelmente justifique a atenção diminuta à estética. A fotografia apresenta baixo contraste e textura (vide a cena azulada da revelação da gravidez, e a ilha das prostitutas), enquanto o som apresenta qualidade desigual de captação e tratamento. Para uma obra que abraça o realismo fantástico, não existe propriamente uma linguagem fantástica para acompanhá-la. Cadáveres viajam em barcos rumo a uma ilha dos mortos e seus pescoços decepados se cicatrizam, porém, as imagens seguem o aspecto bege, plácido, estranhamente naturalista.

O verdadeiro interesse dos criadores reside na jornada de criação narrativa e nos desdobramentos da premissa inicial. Em menos de 90 minutos, este projeto inclui três narradores em off; diversos núcleos em paralelo; uma mistura de documentário, ficção naturalista e ficção fantástica. O mote se concentra em dois roteiristas amigos que começam a desenvolver um filme juntos — ele, autor da ideia original, e ela, cineasta de formação. Na trama fictícia, uma prostituta engravida, enquanto Heloísa vivencia de fato a sua primeira gravidez. Eles concebem então a ilha “para onde vão as prostitutas quando morrem”, movida por um funcionamento particular.

Cartografia das Ondas investe neste imperativo de seguir em frente, imaginando o que poderia acontecer depois, e depois, e depois. Minimiza a psicologia até reduzir os personagens a homens e mulheres de ação.

Talvez uma referência aos artistas tenham sido os intricados roteiros de Charlie Kaufman (em particular, Adaptação, de 2002), navegando entre a metalinguagem e a paródia da criação artística; entre as necessidades do real e as possibilidades vertiginosas da fuga à realidade. Por isso, resta a impressão de que tudo vale — os autores estão mais preocupados em lançar novas ideias do que desenvolver aquelas já introduzidas. E se a mulher sem cabeça permanecesse na areia da praia, e seu filho nutrisse as raízes do solo? E se houvesse uma brecha mágica para as prostitutas mortas escaparem da ilha? E se as moradoras da ilha tentassem roubar o filho de Teresa (Indira Nascimento)? E se?

Neste percurso voraz, detalhes e passagens se perdem. O que houve com a mãe internada de Gledson? Nunca mais se soube do marinheiro fugidio? De onde vem o interesse profundo da prostituta em ser mãe? Por que a prisão da ilha é retratada como um paraíso de alegrias, se as mulheres sonham em fugir? O que restou do amor abortado do barqueiro pela mulher que ele transporta? De que maneira surge a suposta obsessão de Gledson pela prostituta fictícia? Como Heloísa passa da impossibilidade total de criar (devido ao nascimento recente da filha) ao retorno quase milagroso ao roteiro conjunto?

Aos atropelos, Cartografia das Ondas investe neste imperativo de seguir em frente, imaginando o que poderia acontecer depois, e depois, e depois. Minimiza a psicologia até reduzir os personagens a homens e mulheres de ação. Em paralelo, diminui consideravelmente a importância de Gledson no roteiro, em relação a Heloísa. Soa como um brainstorming de pessoas realmente empolgadas com o projeto, dispostas a despejar no papel (e na tela) o que lhes passar pela mente. Um encantamento muito sincero decorre de tamanha humildade e autoexposição — tornamo-nos cúmplices do processo criativo alheio, e também do afeto palpável pela história em desenvolvimento. 

Isso não impede que o andamento seja, no mínimo, desconjuntado. O roteiro talvez represente o aspecto mais questionável deste filme sobre roteiros — Cartografia das Ondas soa como a casa de uma pessoa acumuladora, que empilha móveis e objetos queridos pelos cantos. Mesmo assim, em sua espiral frenética, expõe com franqueza as dificuldades de um processo criativo — no que diz respeito ao texto, pelo menos, já que as escolhas de luz, montagem e arte soam secundárias nos trechos de “making of dentro do filme”. 

Heloísa Machado e Gledson Mercês falam muito de si próprios. Ela expõe o próprio parto, e ficcionaliza cenas reais com a filha pequena. Ele confessa o longo desejo de se tornar ator, citando as idas e vindas ao trabalho com um livro de Nelson Rodrigues a tiracolo. Na simplicidade destes momentos (o aprendizado do dedo prensado na porta) residem os momentos mais belos e ternos do longa-metragem. Quando nos atemos ao aspecto humano e palpável dos personagens, eles ultrapassam o status de meras funções narrativas (“as prostitutas”, “o barqueiro”, “o marinheiro”, etc).

Ao final, resta ao espectador certo prazer em ser incluído no processo de criação — deparamo-nos com a sensação generosa de assistirmos a um projeto elaborado conosco, ao invés de para nós. A defesa da cineasta pelo direito de seguir contando histórias originais, e criando uma cantiga à filha (lindíssima, por sinal), também provoca fácil identificação. Em contrapartida, o resultado pode ser lido como uma pequena fábula anti-aborto, quando se analisa a obstinação de Teresa, enraivecida com a simples menção ao direito de escolha — em paralelo à ode pela transmissão de gerações via gravidez da própria cineasta. 

Há tantos elementos em jogo, tantas histórias em paralelo (a concisão e a coesão certamente não constituem as prioridades dos autores), que é fácil admirar algumas escolhas e recusar as demais. Nesta casa bagunçada, existem tantas preciosidades espalhadas pelos cômodos quanto cacarecos que poderiam ter sido descartados muito tempo atrás.

Cartografia das Ondas (2025)
5
Nota 5/10

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