Este projeto parte de um subgênero específico do cinema metalinguístico, correspondente aos filmes sobre filmes ruins, realizados por pessoas que desconhecem o cinema. Existe um prazer em testemunhar a jornada de amadores descobrindo a necessidade do roteiro, da direção de atores, da fotografia, da montagem, enquanto realizam uma obra péssima em termos criativos. Neste grupo surgem obras que vão de Saneamento Básico (2007), ao recente Babilônia (2022), realizado com uma centena de milhões de dólares de diferença.
Voltando ao caso brasileiro, de baixíssimo orçamento, paira a sensação de que estas obras constituem uma vingança simbólica pelo desprestígio e falta de reconhecimento dos profissionais do audiovisual. “Está vendo como é difícil fazer um filme? Está vendo como é preciso ter conhecimento, técnica, para fazer algo decente?”, insinua cada cena destas comédias paródicas. Enquanto isso, resta aos profissionais o prazer de interpretarem amadores. Há certamente um aspecto catártico e terapêutico no gesto.
Neste contexto, Cervejas no Escuro parte de uma proposta modesta. Muito antes que o cinema apareça nesta história, justificando a utilização de uma linguagem caseira, o longa-metragem aposta num estilo amador, assumidamente precário, no limite onde se torna difícil distinguir entre a autoparódia e a carência explícita de conhecimento e recursos. Num bar, amigos discutem e bebem cerveja, até uma pane de eletricidade servir de pontapé à trama (e legitimar o título). As falas se sobrepõem, enquanto a direção de Tiago A. Neves sublinha o caos das interações sobrepostas.
No entanto, outros elementos chamam atenção para além do conteúdo destas falas: em primeiro lugar, o trabalho deficiente de som. O filme demonstra impressionante dificuldade de captar o som direto, construir o ambiente sonoro, orquestrar diferentes pistas na edição e mixagem. O bar soa como uma bolha isolada, sem barulhos ao redor. Outras falas estão estouradas, e parte considerável dos diálogos é inaudível. (Sorte daqueles que falam inglês, e puderam buscar apoio nas legendas durante a sessão na Mostra de Tiradentes).
Ainda que divertido em vários instantes, o resultado se perde em questão de foco e tom, entre paródia e autoparódia.
Em segundo lugar, a direção de fotografia pena em iluminar ambientes e valorizar espaços. Durante as conversas mais acaloradas, treme-se muito, numa tentativa artificial de imprimir dinamismo ao set de filmagem fictício. Seria comum que o filme-dentro-do-filme, realizado por pessoas sem qualquer conhecimento audiovisual, fosse deficiente em formas e técnicas. No entanto, o ambiente ao redor desta construção careceria do mínimo de cuidado para que a paródia funcionasse em oposição a uma linguagem apurada.
Mesmo os personagens, conflitos e acontecimentos soam abruptos, ou inconsequentes. Edna, a protagonista, insiste em realizar um curta-metragem a respeito da história da sua vida, porque este seria seu sonho desde sempre. Ora, como nenhum familiar ou amigo estava ciente desta paixão duradoura? De onde surge o afeto da mulher pela cultura cinematográfica? Que relação possui com o cinema, com filmes específicos? Em que trabalha, exatamente, o sobrinho encarregado da filmagem, e como ele pode manifestar conhecimentos tão frágeis deste ofício?
O roteiro transparece preocupação insuficiente com a própria lógica interna — o que não implicaria em custos adicionais de produção, apenas maior tempo de amadurecimento. Por que dedicar cenas à dificuldade de conseguir uma câmera, mas fazer roteiro e atores brotarem por milagre? Como a trama se tornou um roteiro escrito? De que maneira surgiram os figurinos de cangaceiros? Ninguém personagem se importou em verificar as regras da inscrição no concurso? Em diversos instantes, o longa-metragem apela a uma ingenuidade próxima de um universo de Trapalhões, onde o amadorismo cômico constitui um objetivo em si próprio, além de um salvo-condito para quaisquer falhas que vierem.
Em algumas cenas, o resultado cresce — caso da encenação do beijo entre dois jovens, na sala de estar emprestada por uma conhecida. A repetição das tomadas fracassadas (porque alguém passa na frente, porque o anfitrião oferece água durante a filmagem, porque o ator vai longe demais no beijo) eleva o humor e reforça o objetivo deste empreendimento: assistir a um cinema que dá errado. Ali, a luz alaranjada e as deficiências de captação reforçam o caos da ação, ao invés denunciarem a si próprias.
No entanto, a montagem teima em sustentar o humor neste nível, e a intensidade logo decresce em sequências menos inspiradas (a conversa com um profissional via Zoom, a sequência de fotomontagens de cangaceiros). O ataque raivoso do produtor contra um especialista na história da região de Princesa soa gratuita e forçada, como uma tentativa de resgatar o vigor da trama e a atenção do espectador na base do grito — literalmente.
Isso nos lembra de que Cervejas no Escuro, para além da brincadeira metalinguística, tem a proposta de aludir à Revolta de Princesa, ocorrida em 1930, quando o município de Princesa Isabel tentou decretar independência do Estado da Paraíba, instituindo seu próprio regime e religião. Edna menciona com frequência a importância de relembrar os fatos de sua cidade, e percebemos cangaceiros esparsos durante as filmagens. No entanto, este núcleo jamais se aprofunda, nem se conecta com a história íntima da mulher em luto pela perda do marido.
Na conclusão, um letreiro explicativo, de tom grave, presta homenagem aos combatentes da Revolta de Princesa. Isso conclui a obra em tom e objetivos totalmente distintos daqueles preconizados a princípio. Ainda que divertido em vários instantes, o resultado se perde em questão de foco e tom, entre paródia e autoparódia, entre lembrança histórica e reverência a combatentes de um episódio nunca plenamente desenvolvido pela trama.