“Essa é a realidade”. Durante a apresentação em vídeo enviada ao público do 14º Olhar de Cinema, o diretor Kiyoshi Kurosawa insistiu que seu suspense teria como objetivo se aproximar ao máximo da realidade japonesa, misturando-a com elementos do cinema de sensações norte-americano. Ele autoavaliou seu trabalho positivamente, estimando que cumpriu “muito bem” com a fusão de elementos, e que a atuação de Masaki Suda, no papel principal, era “excelente”. Ao descrever a possível universalidade da trama, estimou que ela poderia ocorrer “em todo o Japão”. Não em todo o mundo, mas na totalidade japonesa. Afinal, que país é esse, pelos olhos do cineasta?
Cloud: Nuvem de Vingança traz uma visão pouco otimista da vida em sociedade. A narrativa é povoada por pequenos golpistas, mulheres interesseiras, assistentes mafiosos, policiais corruptos e vizinhos vingativos. Já o protagonista Ryôsuke Yoshii representa um jovem solitário. Ele não possui família, amigos duradouros, e demonstra nulo interesse pela namorada que, ocasionalmente, dorme na sua casa. Além disso, não possui obrigações com a sociedade, o que lhe permite bolar qualquer plano para conseguir dinheiro, e se mudar de cidade de maneira instantânea quando a ocasião o exige.
É difícil torcer por quem quer que seja em meio a tantos indivíduos inescrupulosos, impulsivos, fracos e pouco inteligentes — uma ciranda de pessoas tristes com arma na mão.
No caso, este revendedor adquire produtos baratos e os superfatura na hora da venda. Apesar da insistência, ele nunca colhe os frutos da empreitada: para cada venda bem-sucedida, as seguintes corroem o modesto capital acumulado. Certa vez, Ratel (seu apelido na Internet) vende bolsas de origem duvidosa — possivelmente falsificadas. Isso basta para gerar a sua ruína. Pessoas na Internet buscam o falsário, e a polícia fica em seu encalço. Nos grupos online, compradores planejam encontrar o endereço do malandro e matá-lo. Poucos dias depois, eles estão armados com espingardas, planejando sequestro e tortura, a serem exibidos em rede nacional. “Você vai conhecer o inferno!”, eles bradam com olhares assustadores.
Trata-se de uma curiosa realidade, segundo Kurosawa — não exatamente pelo acontecimento dos fatos (sem dúvida, há inúmeros trapaceiros no Japão, como em qualquer lugar do mundo) mas pela velocíssima escalada das hostilidades. A “vingança” embutida de modo espetacular no título brasileiro diz respeito a um duplo movimento: primeiro, destes clientes e revendedores que se sentem enganados por Yoshii, e segundo, do protagonista contra seus algozes. Partindo de uma juventude frustrada, em busca de enriquecimento instantâneo, chega-se a um inesperado bangue-bangue entre pequenos bandidos e minúsculos embusteiros. O jovem é apresentado enquanto inimigo número um; delinquente que acumula desafetos por todo o país. Tudo isso por algumas bolsas falsificadas e aparelhos acima do preço de custo?
O cineasta evita mergulhar na psicologia dos personagens, ou enxergar o mundo pelo olhar de qualquer um deles. Assim, o espectador é posicionado à igual distância de todos, descobrindo somente durante a ação o que estes sujeitos têm em mente. Nunca entendemos a origem, ou os planos motivados pela ganância do personagem central, tampouco as inúmeras mudanças de temperamento e opinião das pessoas que o cercam (o ex-parceiro Muraoka, o assistente Sano, a namorada Akiko). Informações são apresentadas de maneira abrupta (a identidade do vizinho que depreda a casa; dados a respeito do passado criminoso do chefe da gangue), com altíssimo teor de catarse. As pessoas gritam, choram, contorcem-se no chão, quebram uma casa a madeiradas.
Mesmo assim, podendo matar Yoshii em inúmeras oportunidades, os adversários simplesmente o esquecem sozinho três vezes seguidas, possibilitando a fuga. Cloud: Nuvem de Vingança está repleto de conveniências de roteiro, o que inclui o encontro por acaso com diversas pessoas na rua, uma queda injustificável na moto e celulares facilmente rastreáveis (que voltam a funcionar na hora providencial). Embora seja ameaçado de morte com frequência, “Ratel” nunca cogita troca o nickname, esconder-se sob novo alter-ego virtual. Apesar de gerenciar operações secretas, esclarece a qualquer interessado sobre os objetos comprados e modus operandi na revenda.
Torna-se difícil torcer por quem quer que seja em meio a tantos indivíduos inescrupulosos, impulsivos, fracos e pouco inteligentes. No terço final, quando o longa-metragem se converte numa obra policial comum, baseada em trocas de tiros e perseguições num galpão, o espectador se depara com um grupo de fracassados devorando-se mutualmente — uma ciranda de pessoas tristes com arma na mão. Todos aprendem a atirar, descobrem táticas de guerra, escondem-se atrás de trincheiras convenientemente dispostas no caminho entre inimigos — mais um facilitador irresistível aos olhos da direção.
Neste sentido, Cloud: Nuvem de Vingança oscila fortemente entre tons, ora apostando no humor farsesco e físico, ora acreditando dizer algo grave e profundo a respeito da cobiça. “Você está querendo ser mais feliz do que os outros?”, reclama o chefe de Yoshii, ao descobrir os planos de enriquecimento do rapaz. “Eu sou… tão ruim assim?”, questiona-se, pela primeira vez, o revendedor, ao perceber a horda de matadores que o cercam. Nenhum laço é confiável ou duradouro, e todos podem se trair, dependendo das conveniências. A nuvem do título faz referência à aparência nebulosa que prepara à entrada no inferno. A perspectiva não se mostra particularmente otimista.
O resultado é certamente agradável em termos de ritmo e condução. Para uma obra com pouco mais de duas horas de duração, Kurosawa elabora um suspense ágil, repleto de reviravoltas. Entretanto, permanece na dúvida constante entre imersão e distanciamento, entre criticar o mundo do crime ou se divertir a partir de suas regras. Afinal, o mundo dos trapaceiros é condenável ou delicioso? Lamentável ou divertidíssimo? O discurso jamais se decide. Embora apresente um painel devastador do estado das coisas, o projeto evita compreendê-lo com base em raízes culturais, políticas, sociais. Trata-se de uma questão geracional, de falta de oportunidades sistêmicas, de má índole individual? Não sabemos. Novos personagens surgem de lugar nenhum, com motivações repentinas e ações ainda mais abruptas. A obra adora mostrar o caos nas relações de poder, mas não necessariamente refletir sobre elas.