Confissões de um Cinema em Formação (2023)

A arte se estuda

título original (ano)
Confissões de um Cinema em Formação (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
76 minutos
direção
Eugênio Puppo
Com
Carlos Reichenbach, Máximo Barro, Jean-Claude Bernardet, Ismail Xavier, Ana Carolina
visto em
Festival É Tudo Verdade 2023

O início deste documentário é hilário. Sentada no sofá, uma mulher lê um livro de Christian Metz, teórico do cinema, em francês. Ela comemora quando compreende alguns conceitos. Na maior parte do tempo, ergue os braços em sinal de dúvida, ou lança um olhar de confusão. “Filme como cinema”? Diferença entre cinema e filme? Semiótica da imagem? O trecho serve como bela introdução ao projeto que enxerga a criação enquanto processo, ou ainda, como instituição.

Logo, o foco na “formação”, mencionada no título, foge da listagem de “melhores filmes do cinema brasileiro” ou grandes clássicos. Felizmente, o diretor Eugênio Puppo evita a homenagem estéril ao panteão do audiovisual do país, caso em que os autores costumam se limitar à constatação da qualidade de títulos já consagrados. O interesse se encontra além. Ele busca entender de que maneira o Brasil estudou cinema, pesquisou, herdou linguagens de outros países e gerações, de maneira mais ou menos consciente. Como adquiriu este caminho específico que conhecemos hoje?

O cinema se torna objeto de estudo, de conhecimento. A cinefilia clássica costuma desprezar a ideia de que a linguagem audiovisual pode ser descoberta e refinada. Prefere a visão romantizada de que cineastas vêm prontos, dotados de uma sabedoria divina quanto à mise en scène, o trabalho com atores, o uso de luz, de enquadramentos, profundidade de campo, ritmo. Ora, a exemplo de qualquer outro campo de estudo, ele se aprende — bem ou mal, em condições favoráveis ou desfavoráveis.

O documentário busca entender de que maneira o Brasil estudou cinema, pesquisou, herdou linguagens de outros países e gerações, de maneira mais ou menos consciente.

As entrevistas revelam os percalços de um cinema iniciante. No interior dos primeiros cineclubes e grupos de cinema de universidade, como filmavam os estudantes sem acesso às câmeras, à película? Que professores tinham, e qual era a formação destes profissionais? Quais filmes os inspiravam? De que maneira nos apropriamos do referencial estrangeiro para aplicar uma brasilidade específica? Busca-se a ontologia de uma linguagem nacional, ao invés de uma história de filmes e pessoas. Há um gesto de pesquisa artística muito sofisticado nesta obra.

Em paralelo, as conversas se encontram longe do verniz acadêmico. Ao mencionar universidades e salas de aula, teria sido tentador transformar o projeto num material didático por conta própria. Felizmente, Puppo estabelece um bate-papo descontraído, dotado de evidente intimidade e despojamento com os estudiosos e cineastas participantes. Os dados e fatos listados ganham a mesma atenção de anedotas esclarecedoras sobre erros na produção, falhas de comunicação, acidentes de percurso. O ritmo leve sugere a impressão de um grupo de amigos próximos numa mesa de bar, discutindo entre palavrões, provocações e lembranças saudosas.

Enquanto isso, diversos filmes nacionais são utilizados em diálogo com as falas de Carlos Reichenbach, Jean-Claude Bernardet, Ismail Xavier, Ana Carolina, Máximo Barro e outras figuras fundamentais de nossa trajetória cinematográfica. A conexão entre fala e filmes se mostra particularmente rica, contornando a armadilha das redundâncias. A imagem jamais repete o teor dos diálogos, mas propõe formas de fricção com o conteúdo sonoro. Muitos trechos são extraídos de ficções situadas em universidades, ou na cidade de São Paulo, transmitindo a atmosfera de precariedade e criatividade, sem necessariamente reincidir no significado nas falas.

Melhor ainda, esta seleção coloca lado a lado os clássicos com filmes menos conhecidos, e os projetos profissionais com experiências amadoras de estudantes universitários. Some a noção de hierarquia — algo compreensível para um diretor-pesquisador que pretende analisar um corpo de obras sem prejulgamentos de valor. Mesmo no caso de autores consagrados, preferem-se as experiências de menor sucesso na carreira. Aí, sim, descobre-se algo novo, baseada na noção de processo até se atingir a maturidade e o reconhecimento.

A montagem se diverte com associações, enquanto estabelece um ritmo precioso entre reflexão e contemplação. As bicicletas italianas de Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, são comparadas pela edição com as bicicletas brasileiras de O Grande Momento (1958), de Roberto Santos. Segmentos de Brasília num curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade se sucedem à experiência gore de alunos da ECA, reproduzindo sintomaticamente o ataque numa sala de aula da USP, quando o invasor crava os dedos nos olhos dos estudantes. 

Aqui, discute-se com frequência a fusão entre o cinema erudito e o popular, ou ainda a busca por uma forma ousada de cinema capaz de dialogar com o público amplo. Este horizonte quase utópico se transforma no dilema essencial de um país sem indústria estruturada e amadurecida, capaz de ser desmantelada com algumas canetadas de um presidente autoritário qualquer — os anos Collor e os anos Bolsonaro que o digam. Confissões de um Cinema em Formação, por si próprio, também almeja estabelecer a ponte crítica-público tão rara nos documentários.

De certo modo, paira a noção de um cinema que resiste, e que continua aprendendo. Ele segue se pesquisando, mudando suas referências, transformando a relação com o espectador. O documentário nunca chega ao século XXI, posto que seu foco se encontra nas primeiras décadas, até a relação delicada com os agentes da ditadura. Para além da simples metalinguagem de um filme sobre filmes, de cinema sobre cinema, resiste a noção de que o Brasil faz arte para compreender melhor as suas próprias contradições. A discussão vai além da percepção de qualidade da cinematografia nacional.

Em contrapartida, talvez alguns aspectos prejudiquem a experiência do espectador. A maioria deles são detalhes, como os letreiros sem padronização (alguns filmes não têm o ano mencionado, em outro caso, suprime-se o diretor). Sobretudo, resta a sensação estranha de que uma conversa tão enriquecedora não sabia ao certo como se concluir, razão pela qual, após sucintos 76 minutos, os letreiros começam a subir na tela de maneira abrupta, sem um desfecho que nos prepare para o encerramento da experiência.

Isso não impede que o longa-metragem ocupe um lugar precioso dentro das obras sobre cinema. Puppo dispensa o aspecto laudatório, as revelações de um passado desconhecido e os lembretes saudosistas. O autor, que tem desenvolvido trabalhos em festivais, com restauração de filmes e o resgate de obras pouco conhecidas, enxerga o cinema num escopo que supera o estudo de trabalhos finalizados. Confissões de um Cinema em Formação se traduz num road movie do cinema brasileiro: interessa investigar que caminhos tomamos, quantas vezes o carro quebrou, de que maneira foi reparado o motor. O destino, aqui, permanece em segundo plano.

Confissões de um Cinema em Formação (2023)
8
Nota 8/10

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