Ao longo de uma sólida carreira artística, Renata Carvalho tem refletido a respeito da conotação política de sua existência. O simples fato de um corpo transexual caminhar pelas ruas e ocupar o espaço público incomoda uma parcela da sociedade que a considera pecaminosa, agressiva, pornográfica, inaceitável. Ela foi agredida nos palcos, após a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Foi rejeitada pelos familiares. Foi agredida na feira. Sua fisicalidade chega aos olhos alheios antes mesmo de sua subjetividade. Trata-se de um corpo demarcado socialmente, conforme explica a artista.
Por isso, neste média-metragem (ele mesmo, um formato marginal entre as produções de cinema), Renata e a diretora Cibele Appes decidem apresentar a mulher trans ao público. “Eu quero lhes contar a história do meu corpo”. As criadoras o fazem com calma, sem qualquer anseio por chocar ou afrontar o espectador. Explicam e mostram tal qual fariam a uma criança, ou outra parcela social julgada, pertinentemente, ignorante quanto ao tema em questão. Se não me conhecem pelo que sou, então lhes mostro “os meus eus”. Comecemos pelo começo.
A imagem se concentra nos fragmentos do corpo da atriz. A estratégia se revela tão simples quanto astuciosa: ao se aproximar com naturalidade — sem o fetiche nem o sensacionalismo dignos da grande mídia —, a câmera se foca em braços, pernas, pescoço, bunda, barriga, pés, mãos. Trata-se de um corpo idêntico ao nosso — espectador cisgênero, entenda-se, e majoritário no acesso ao cinema. Os fragmentos constituem a aproximação mais banal possível de uma corporeidade. Nesta desmistificação do caráter monstruoso imputado aos indivíduos trans, desenha-se uma abordagem política fundamental.
Em se tratando desta temática, a maior afronta ao espectador reside em não propor afronta nenhuma. Espera-se uma subjetividade trans agressiva, perigosa, dotada de práticas estranhas e sexualizadas no dia a dia. Ora, a personagem prepara um suco, corta morangos, vai à feira, varre o chão, conversa com a vizinha, rega as plantas. A banalidade deste cotidiano transparece um engajamento inteligente: onde se espera violência, encontra-se a representação do pacifismo e da rotina similar à de qualquer espectador cis hétero.
Enquanto isso, a narração de Renata Carvalho discorre acerca de temas essenciais à compreensão social de homens e mulheres trans. “O corpo das travestis é sobretudo uma linguagem”, afirma. Define-se “cubista”, por ter moldado cirurgicamente o corpo à sua identidade, através de próteses e demais procedimentos médicos. Compara o isolamento decorrente da Covid-19 ao isolamento do qual as travestis sempre foram vítimas — mais uma proposta de identificação com o universo cisheteronormativo. O discurso faz prova de uma paciência e uma didática excepcionais.
Na parte inferior da imagem, cita livros, personalidades, peças de teatro a respeito dos temas evocados. Menciona Érica Malunguinho, lista obras de Sílvio de Almeida e Bel Hooks, além de clássicos como Grande Sertão: Veredas. A protagonista posa com estes livros, organiza-os numa pilha, lê trechos pinçados das páginas. Caso utilizasse as referências na forma de meras marcas de uma intelectualidade, talvez soasse vazio. No entanto, é evidente que os conceitos desenvolvidos nas obras literárias foram devidamente incorporados e reestruturados pela atriz na elaboração do texto narrado.
Talvez as palavras jogadas pela imagem criem certa dispersão, equivalente a ler a página de um livro enquanto se presta atenção nas notas de rodapé. Mesmo assim, justificam-se pela intenção de popularizar os livros e seus autores. Impressiona na abordagem de Carvalho e Appes a disposição a dialogar com a diferença, com o outro — desta vez, a alteridade somos nós. As criadoras teriam motivos de sobra para demonstrarem indignação com esta maioria que oprime a protagonista. No entanto, adotando distanciamento e boa-vontade, preferem conversar.
O roteiro vai além, ao propor a releitura de iconografias reservadas ao imaginário da cisgeneridade. A travesti-Jesus, a travesti-deusa são evocadas, com discrição, enquanto propostas de uma reflexão incipiente. Fica claro que ambas poderiam desenvolver este raciocínio, caso o desejassem. Mas estimam que a aula foi suficiente por ora. Tal qual uma sessão de terapia, plantam-se sementes de discussão, pressupondo que precisem de tempo para desabrochar. Quem sabe na próxima sessão, alguns destes fundamentos terão assentado, criado raízes.
No final, Corpo Sua Autobiografia pode falar de si próprio, porém está longe de ter algo a confessar, ou um segredo a contar. O corpo em questão está muitíssimo bem resolvido com sua história, sua aparência, suas ambições. Estima, no entanto, que o outro ainda não o conheça, precisando de tamanha disposição introdutória. Entre fragmentos de performance, falas socio-históricas e segmentos do dia a dia (bela sequência acelerada com o amigo, conversando e dançando pela casa), o corpo trans nos convida à identificação. Estimula, portanto, um bem-vindo princípio de empatia.