Criaturas do Senhor (2022)

Aos culpados, as trevas

título original (ano)
God’s Creatures (2022)
países
Irlanda, Reino Unido, EUA
gênero
Drama
duração
100 minutos
direção
Saela Davis, Anna Rose Holmer
elenco
Emily Watson, Paul Mescal, Aisling Franciosi, Toni O’Rourke, Marion O’Dwyer, Isabelle Connolly, Brendan McCormack, John Burke, Steve Gunn, Philip O’Sullivan, Lalor Roddy, Leah Minto
visto em
Cinemas

Aileen (Emily Watson) chega em casa depois de um dia de trabalho. Ela não acende as luzes. O local continua escuríssimo. Em outro momento, todo o vilarejo de pescadores vela o corpo de um colega afogado. Os móveis e objetos mal se percebem, de tão sombrias que são as luzes. À noite, os habitantes se encontram num bar silencioso, de poucas pessoas, e quase nenhuma fonte luminosa. Mesmo na fábrica onde trabalha com peixes e ostras, Aileen se vê com frequência na penumbra total, de onde sai — sabe-se lá como — uma minúscula fonte avermelhada, para pelo menos tornar seu rosto visível na escuridão.

Criaturas do Senhor se insere na crença estética de que a culpa e o medo devem habitar o escuro. Frequentemente, os filmes de terror imaginam casas, escritórios e hospitais inexplicavelmente sombrios. Pois alguns dramas morais buscam o mesmo recurso, no intuito de mostrar que os personagens se encontram, literalmente, sem referências, perdidos, nas trevas, e distantes da luz (enquanto esclarecimento e paz). Trata-se de um recurso tão desgastado quanto óbvio em sua representação pictórica.

No entanto, as diretoras Saela Davis e Anna Rose Holmer possuem uma compreensão clássica, cartesiana e quase teatral da mise en scène. Neste universo de crimes sem castigo — quando Brian (Paul Mescal), filho de Eileen, estupra a jovem Sarah (Aisling Franciosi) —, os rostos ocupam o centro do quadro, para se captar o máximo da expressividade dos atores. O universo é composto ou por close-ups, ou planos gerais, sem intermediário entre os dois. Enxergamos os poros do elenco, ou apenas as grandes ondas de uma paisagem distante.

Estes recursos produzem uma sensação fria, ao limite do mecânico, diante desta trama a respeito de sentimentos. Todos os acontecimentos são antecipados, explicados, e as simbologias se repetem. O filme se abre com um rapaz afogado, antes que alguém avise, de maneira didática, que os pescadores da região são proibidos de aprender a nadar, porque isso traria má sorte. Ora, de onde vem essa crença? A partir deste ensinamento acessório (Por que as mulheres dizem isso uma à outra, posto que ambas já sabem da superstição?), torna-se evidente o destino reservado aos vilões uns 80 minutos mais tarde.

Criaturas do Senhor se insere na crença estética de que a culpa e o medo devem habitar o escuro, no intuito de mostrar que os personagens se encontram, literalmente, sem referências, perdidos, nas trevas.

Após o crime cometido, Brian aparece com um corte profundo — o responsável tem literalmente sangue nas mãos, sem ao menos ganhar o senso trágico de uma Lady Macbeth. Ao perceber que sua mãe protege o filho estuprador, a irmã Erin (Toni O’Rourke) proíbe que a avó segure o netinho, porque poderia machucá-lo. Após sair ileso do crime, o jovem chacoalha com força impressionante a rede onde se prendem os mariscos. 

Para quem se questiona onde andava o filho pródigo antes do retorno ao vilarejo irlandês, um personagem avisa ao recém-chegado: “Você estava na Austrália”. Ora, ele não sabia de onde vinha? Haveria maneiras mais sofisticadas de transmitir esta informação ao espectador. Em outras palavras, a direção está longe de ser sutil, ou particularmente ambígua em sua abordagem. Talvez esta seja uma das principais fraquezas do drama: a tentativa de abordar um terreno dúbio por mãos nada afeitas à ambiguidade.

Mesmo assim, o elenco garante o prazer da experiência. Emily Watson, atriz pouco utilizada em papéis principais no cinema recente, ganha uma personagem à altura. Através de um minimalismo exemplar, demonstra a capacidade de variar do conforto ao incômodo, da alegria ao pavor, da segurança ao medo, às vezes numa única cena, em transformações minúsculas na expressão. Infelizmente, aí surge o zoom didático das diretoras no rosto da atriz, como se dissessem: “Olha só! Olha como atua! Olha essas nuances!”, mas isso não seria culpa de Watson. Mescal e o resto do elenco se sai bem, ainda que em papéis menores.

Ao mesmo tempo, procura-se interpretar o caso pelo prisma do machismo inerente às pequenas cidades cristãs da Irlanda. Qualquer brasileiro, em especial os interioranos, poderão reconhecer este local onde todos se conhecem, se vigiam, julgam as atitudes alheias, embora, por trás dos muros de suas casas, pratiquem os pecados que condenam nos outros. As derivas da família patriarcal, os abusos machistas e a proteção masculina entre criminosos são devidamente retratados. Existe uma preocupação notável de contextualizar o crime numa sociedade mais ampla.

Em contrapartida, pode incomodar a insistência em situar o ponto de vista junto à mãe do rapaz — ao invés da vítima, por exemplo. Durante a maioria da trama, persiste a impressão de que o caso reside nas palavras dele contra as palavras dela. Isso significa que ambas as versões se equivaleriam, ao invés de se dar prioridade à alegação das vítimas. Apenas na cena final, a dupla de diretoras traz a bela ideia de se colar ao rosto da mulher agredida. Mas terá sido tarde: até então, prefere sustentar a impressão de dúvida, como se Sarah pudesse estar mentindo.

É certo que a proteção do filho culpado também provém da educação cristã, e de um machismo reproduzido, em certa parte, pelas próprias mulheres com seus filhos homens. A família vem em primeiro lugar, certo? Homens cometem “deslizes”, são meio impulsivos, não conseguem se conter, não é? Ela deve ter provocado de alguma forma, não? No entanto, o roteiro nunca questiona as raízes do pensamento cristão da própria Aileen. Aos poucos, ela começa a duvidar do comportamento do filho, de maneira quase natural, espontânea. Faltou trabalhar a evolução da mãe-coragem à mulher horrorizada com o estupro.

No final, o melhor aspecto de Criaturas do Senhor reside no tratamento sonoro. Diante de imagens convencionais, escuras e presas a enquadramentos pouco expressivos, a captação e mixagem de som sugerem um assombro próximo ao cinema de horror. A dor de Sarah após a noite fatídica se transmite apenas por tambores; a confrontação desta com Aileen ocorre numa suspensão total do som direto; respirações fortes se sobrepõem aos ruídos e diálogos para sugerirem um espaço interno aos personagens. Existe uma melhor concepção estética da paisagem sonora do que imagética. 

Logo, o resultado busca um efeito slow burning, com um suspense perene e certeiro, que desembocaria num clímax estrondoso. Ora, a experiência se aproxima de algo morno: nem a tensão atinge níveis perturbadores, nem o clímax nas águas, veloz e mal filmado, produz um efeito marcante. Chega a surpreender que a tão comentada A24, produtora especializada em obras independentes e no cinema de horror, tenha deixado passar a cena do barco sem refilmagens ou novas versões na montagem. O clímax carece de mais tomadas e ângulos para se completar na edição. Ressalvas à parte, resta uma introdução modesta aos efeitos nefastos da ideologia conservadora em pleno século XXI.

Criaturas do Senhor (2022)
5
Nota 5/10

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