“A vida é feita de escolhas. Envelhecer não é uma delas”. Na narração em off de abertura, Mônica (Fabiana Karla) prepara o espectador, didaticamente, para uma discussão a respeito do etarismo. Esta profissional, que abandonou o trabalho num escritório para se dedicar aos filhos, se sentiria deslocada por não receber a atenção social de antigamente. Mais tarde, numa viagem luxuosa, alguém levanta a dúvida: “Será que é bom para o resort ter uma miss quarentona?”. O filme parece realmente se indagar a respeito.
Pouco depois, De Repente, Miss levanta a questão da gordofobia. Sem jamais enunciar a palavra “gorda”, faz com que o dilema domine a vasta maioria das cenas. A heroína é desprezada pelos filhos e pelas outras mulheres por ter um corpo diferente daquele de dez anos atrás. Acha-se graça que Mônica possa se candidatar a miss num concurso. Ridiculariza-se a possibilidade que ganhe. Duvida-se que consiga dançar junto às outras mulheres. Espanta-se que tenha a possibilidade de encontrar roupas que lhe caiam bem.
O projeto incomoda, em sua integralidade, pela ausência de foco. Ou melhor: pela recusa acanhada em adotar um ponto de vista — político, ideológico, como quiser. O roteiro de Dani Valente e a direção de Hsu Chien desejam fazer piada de gordo enquanto denunciam a gordofobia; rir da inadequação feminina enquanto defendem a autonomia das mulheres; defender que o lugar da mulher é cuidando das crianças, mas que ela também pode se dedicar ao trabalho (com a ironia de que a conjunção de ambas ainda seja vista como impossibilidade).
O filme deseja fazer piada de gordo enquanto denuncia a gordofobia; rir da inadequação feminina enquanto defende a autonomia das mulheres.
O discurso busca falar de um problema sobre o qual não ousa falar, de fato. Tem vergonha de sua crítica minúscula, como se o fato de estruturá-la fizesse da comédia algo menos engraçado, menos acessível. Então, dá-lhe pseudo consciência social. Sabe aquele fator pelo qual Mônica é rejeitada socialmente? O fato de ser, assim, mais cheinha, mais… fortinha? Então, achamos errado. Vamos rir disso durante vinte cenas consecutivas, mas só para constar, somos contra, ok? A quem interessar possa, pessoas gordas são engraçadíssimas, mas têm todo o direito de serem gordas.
Mônica possui outros dilemas. A filha adolescente pensa apenas em ganhar seguidores nas redes sociais — desde que a comédia nacional descobriu o papel do “filho Instagramer”, acredita que isto baste enquanto construção de personagem —, o filho menor sonha em beijar pela primeira vez, o marido apaixonado parece não perceber que a esposa sofre, limitando-se a acenar e sorrir, cena após cena. Triste mundo onde as figuras são definidas por uma função mínima, jamais uma subjetividade.
O texto carrega tantas incongruências, falhas e aspectos problemáticos que realmente se questiona o fato de ter passado por dezenas (centenas?) de olhos antes de chegar à filmagem, edição, finalização, distribuição, exibição. Costuma-se atacar a crítica de cinema que torce o nariz automaticamente às comédias populares por simples elitismo e recusa do gosto popular. Sim, este fenômeno existe. No entanto, diante de um roteiro como este, cabe a pergunta sincera a respeito do que haveria a defender. A construção transparece um amadorismo preocupante.
Flávia (Danielle Winitz) passa o tempo inteiro boicotando Mônica no concurso de miss de um resort nordestino, embora jamais a considere uma candidata séria. Por que atacaria a mulher que estima ser menos capaz de vencê-la? Por que não se revela competitiva com nenhuma outra? Gigi (Nany People) despreza a mulher gorda e faz o possível para que desista da disputa. Quando Mônica enfim retira sua participação, a organizadora afirma que “não fica bom para a imagem do concurso uma desistência”. Ora, por quê? Quem saberia disso?
Os problemas continuam. A candidata a miss seria uma celebridade escondida na Internet, embora o único indício de tal atividade dê a entender que ela meramente gerencia o perfil de terceiros nas redes sociais. A ex-colega de trabalho (Naruna Costa) surge por acaso no estacionamento, para humilhar a protagonista. Depois, irrompe no resort do outro lado do Brasil, na mesma hora de Mônica. O restaurante de Rui (Roney Villela) aparenta sofrer com problemas financeiros, jamais justificados. Trava uma competição acirrada com os estabelecimentos ao lado, nunca mostrados. Mônica se diz “extremamente competitiva”, apesar de jamais percebermos tal traço em sua construção.
Os criadores parecem não ter dedicado mais de poucos minutos a refletir sobre a história, sua lógica interna, e a maneira como refletiriam conflitos de pessoais reais, em contextos minimamente verossímeis. Certamente não seriam a propaganda risível de um cartão de crédito, nem o marketing do resort real, que atenuariam a sensação de artificialidade. A suspeita de infidelidade por parte de Mônica soa absurda; o namoro repentino da filha se faz e se desfaz num passe de mágica; o concurso se anuncia dezena de vezes, para depois ser acelerado e suprimido em elipses pela montagem. E o que dizer da tentativa de assassinato em alto mar, convertida em momento benéfico de autodescoberta?
A direção e a direção de fotografia tampouco sabem qual rumo tomar em relação ao tom cômico. Os atores principais acreditam estar num drama; mas os secundários existem dentro de uma comédia pastelão. As cenas externas são tipicamente turísticas, enquanto as internas se mostram acinzentadas, sem luz nem cor, e com dificuldade de imprimir dinamismo. Prepara-se para uma cena de dança curta, mal filmada, e para uma seleção de misses desprovida de qualquer critério ou verossimilhança. Escolhe-se a vencedora de acordo com o conhecimento de citações famosas? Oferece-se emprego de maneira repentina, graças ao desempenho de biquíni numa passarela?
De Repente, Miss exige que o espectador dedique 90 minutos de sua atenção a personagens que os próprios criadores não se esforçaram em construir, desenvolver, aprofundar. Ainda paira a impressão de que “é só comédia, é só pra rir, pra desligar o cérebro, não é pra pensar muito”, e que, portanto, justificaria fazer um filme de qualquer maneira, porque o mínimo já estaria de bom tamanho. Como é triste ver comédia feita por quem, no fundo, menospreza a comédia. Ainda se estima que o real não forneceria elementos suficientes de comicidade — razão pela qual se investe em coincidências, golpes do acaso, reviravoltas do destino, concursos absurdos em contextos improváveis.
É evidente a diferença entre um projeto de grande investimento emocional e artístico (o que inclui muitas comédias excelentes) e uma obra feita de qualquer jeito, no piloto automático, para preencher programações e vender cartões de crédito ou estimular viagens ao Nordeste. Trata-se de um projeto tão preguiçoso, desleixado e, ao mesmo tempo, tão endinheirado (vide a viagem, figurinos, atores realmente talentosos tentando imprimir alguma verdade a personagens de papel-cartão), que ele aparenta desprezar seu espectador. Uma comédia popular que existe apesar do público, contra ele.