Deixe-Me (2023)

Ternura infinita

título original (ano)
Laissez-Moi (2023)
país
França, Suíça, Bélgica
gênero
Drama, Romance
duração
92 minutos
direção
Maxime Rappaz
elenco
Jeanne Balibar, Thomas Sarbacher, Pierre-Antoine Dubey, Véronique Mermoud, Alexia Hébrard, Marie Probst, Adrien Savigny
visto em
Cinemas

A mulher elegante caminha ao lado de uma imensa barragem. Pega o teleférico até um hotel nas montanhas, onde começa a perguntar ao garçom a respeito da origem dos homens solitários no restaurante. Aquele ali fica hospedado por duas semanas? Não, é tempo demais. O outro já vai embora amanhã? Perfeito. Ela se senta na mesa destes desconhecidos, troca meia-dúzia de frases e se convida para o quarto deles. Passado o sexo (rápido, porém carinhoso), veste-se e volta para casa. No dia seguinte, repete o procedimento.

Claudine (Jeanne Balibar) possui uma rotina eficaz. Ela manifesta uma economia exemplar de afetos, de tempo e recursos. Afinal, cuida sozinha do filho com deficiência, há décadas, sobrevivendo com o trabalho de costureira. Reserva uma quantia para a ajudante do garoto, e mantém o resto das contas sob controle. Quando os homens lhe propõem ajuda financeira (às vezes, confundindo-a com uma prostituta) ela recusa, agradece educadamente e sai do quarto. Desde o abandono do marido, toda rejeição lhe parece definitiva: ao descobrir que uma amiga de longa data vai se mudar, pressupõe que nunca mais a verá.

Um dos elementos determinantes neste drama franco-suíço-belga reside na complexa psique da protagonista de poucas palavras. A ternura evidente cada vez que admira o filho; o tratamento ríspido com a cuidadora e a eficiência no flerte com os homens transparecem uma coreografia aperfeiçoada pela mulher ao longo de anos. É preciso uma atriz do talento de Jeanne Balibar para encarnar tal personagem sem a transformar numa vítima da sociedade, nem uma porta-voz da independência feminina. Claudine parece não representar ninguém além de si própria.

Um potente longa-metragem de estreia, apostando que uma obra inteira possa se basear na descoberta de um amor inoportuno, a exemplo de clássicos como As Pontes de Madison.

A direção de Maxime Rappaz imerge o espectador numa espécie de transe, graças à combinação fantástica desta natureza imponente com a engenharia humana e a estabilidade de sua protagonista. A maioria dos cineastas ficaria tentado a criar conflitos relacionados ao julgamento moral dos moradores, à incapacidade de cuidar do filho, ao casamento destes viajantes no hotel. Ora, nada disso acontece. O principal conflito digno deste nome reside no amor, quando Michaël (Thomas Sarbacher) se afeiçoa por ela e deseja repetir os encontros. Esta proposta rompe com a solidez da rotina da costureira, que hesita em se entregar a um novo romance. 

Logo, Deixe-Me constitui uma história de amor que evita os clichês relacionados à infantilidade dos amantes. Ao invés de associar pessoas apaixonadas a sonhadores que perdem o sono e não podem viver sem suas metades, o longa-metragem encara a situação de duas pessoas próximas dos 60 anos, descobrindo um sentimento amoroso não convém a nenhuma delas. Mesmo assim, Claudine acaba repetindo as tardes juntos. Então, sua voz se torna mais sussurrada, os gestos ficam mais doces, o timbre da voz se torna mais agudo. Ela sucumbe à presença do amante indesejado.

A barragem ilustra, neste caso, a divisão entre a francesa e os visitantes de diversos países, ou mesmo este caráter impenetrável da subjetividade da heroína. Após 90 minutos com ela, ainda podemos nos surpreender em relação a algumas atitudes, algo que o roteiro se recusa em justificar. A protagonista não deve explicações a ninguém — seja para os parceiros, seja para o espectador. O imaginário de solidez, mas também de frieza associado ao paredão metálico se aproxima da mulher que briga consigo mesma, entre abraçar a razão ou os sentimentos.

Rumo ao final, Jeanne Balibar rompe com o trabalho naturalista para desenhar uma crise próxima ao cinema de terror. Chegando a data de partida de Michaël, manifesta um ataque de pânico (ou seria de tristeza, angústia?) performático, artificial, remetendo a uma forma de monstruosidade que aquele corpo elegante jamais manifestaria. Um comportamento semelhante se reproduz em outra sequência, ao final. Paira a sensação de que, após tanto se conter, encarnando um ideal de autossuficiência, ela desaba em frente às câmeras (somente para o espectador), liberando dores e angústias represadas.

Apesar de tantas qualidades de Deixe-Me, que incluem a coesão da montagem e a delicadíssima trilha sonora (melódica, sem soar insistente, nem redundante), alguns fatores o prejudicam. O principal problema do filme decorre da escolha de um ator sem deficiência para interpretar um rapaz deficiente. Se Rappaz possui interesse em abordar PCDs no cinema, o mínimo posicionamento ético consistiria em contratar um ator defi. Assim, daria emprego a estes artistas e ofereceria a oportunidade de mostrarem tudo o que são capazes de fazer no cinema. 

Pierre-Antoine Dubey é certamente talentoso, mas esta não é a questão. Cada vez mais, a interpretação de personagens deficientes por atores não-deficientes se assemelha ao blackface ou ao transfake, ou seja, uma falsa representatividade que se recusa a dar voz ou protagonismo aos indivíduos que pretende defender. Existe uma contradição inerente neste gesto, batizado de cripface. Em se tratando de uma obra tão carinhosa, de vocação naturalista, a escolha dos produtores soa artificial e diminui a vocação humanista.

Em paralelo, para um filme focado em relações pragmáticas e de ocasião, o trabalho de nenhum personagem soa convincente — isso vale para Claudine, Michaël, e mesmo a cuidadora Chantal (Véronique Mermoud). Se o ofício é motivo de orgulho, e ponto principal para justificar o lugar onde se encontram, além dos meios para manterem tal autonomia, o projeto ganharia em demonstrar outros investimentos afetivos de seus personagens para além do amor romântico. Ressalvas à parte, Deixe-Me constitui um potente longa-metragem de estreia, apostando que uma obra inteira possa se basear na descoberta de um amor inoportuno, a exemplo de clássicos como As Pontes de Madison. Rappaz oferece um olhar contemporâneo às mulheres, embora se apoie em estruturas narrativas incomuns atualmente.

Deixe-Me (2023)
7
Nota 7/10

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