Dormir de Olhos Abertos (2024)

A cidade dos outros

título original (ano)
Dormir de Olhos Abertos (2024)
país
Brasil, Taiwan, Argentina, Alemanha
gênero
Drama
duração
97 minutos
direção
Nele Wohlatz
elenco
Chen Xiao Xin, Wang Shin-Hong, Liao Kai Ro, Nahuel Pérez Biscayart, Lu Yang Zong
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Dormir de Olhos Abertos é composto por uma sequência de rejeições e abandonos. A narrativa parte de uma mulher taiwanesa, esperando pelo namorado que nunca vem. Passa pelo vendedor especializado em oferecer produtos pelos quais ninguém se interessa (guarda-chuvas na cidade onde não chove; boias na praia onde não se banha; cartões postais onde não há turistas). Chega à jovem que trabalha para a tia, dona de um varejo de roupas, embora não seja reconhecida enquanto funcionária devido aos laços familiares.

Distantes de suas terras natais, e alheios à cultura recifense, Xiao Xin (Chen Xiao Xin), Fu Ang (Wang Shin-Hong) e Kai (Liai Kai Ro) subvertem a lógica do turista desejando acumular experiências ou somar destinos em sua lista pessoal. Eles operam na lógica da subtração. “Perdi dois países. Melhor continuar em movimento”, afirma um diálogo. Assim, caminham sempre, porém sem rumo definido. Perambulam pelas avenidas, pelo centro lotado de comerciantes e pedestres, pelas praias e calçadas. 

A diretora Nele Wohlatz, a partir de um roteiro de sua autoria, coescrito com Pío Longo, adota diversas liberdades em relação à dramaturgia clássico-narrativa. Ela permite que personagens centrais desapareçam, seja pela montagem paralela, seja porque decidiram retornar aos seus países, ou experimentar outras cidades brasileiras. De repente, aquela figura que conduzia a trama, e da qual a câmera nunca se descolava, some dos nossos olhos. A lógica da separação também opera no vínculo entre a imagem e seus personagens.

O longa-metragem sustenta uma catarse presa na garganta. Ninguém grita, chora, goza, ri. Os sentimentos ficam presos nestes corpos amolecidos pelo calor e pelo sentimento de estagnação.

O título aparece somente depois de vinte minutos, quando já se estabeleceu uma lógica próxima do realismo fantástico. A jornada destes imigrantes impregna as passagens realistas com um teor delirante, pois provocado por figuras anônimas e ausentes em tela. Num prédio de alto padrão, alguém arremessa uma melancia pela janela. Adiante, notas de dinheiro caem do céu quando um empresário suspeito de corrupção lança as provas ao longe. Os poderosos e dominantes são desprovidos de rosto. Assumem a vocação de um poder invisível.

Entre invisibilidades e não-pertencimentos, Dormir de Olhos Abertos converte-se num filme de fantasmas. A impossibilidade de assimilar por completo outra língua e cultura se materializa na dificuldade de repousar à noite: Kai não consegue dormir por causa do bipe disparado do ar condicionado e, depois, adormece no ônibus. Xiao Xin se encosta onde pode, fecha os olhos, suspira. O alarme de incêndio dispara num prédio, obrigando os moradores a descerem à garagem, de pijamas, até a crise passar. Fu Ang insiste em desabafar com os colegas de quarto, que clamam por silêncio para descansarem após uma jornada de trabalho. Ser estrangeiro significa nunca poder dormir em paz.

Logo, os personagens transmitem uma mistura de cansaço, melancolia e solidão. Possuem alguns amigos na fábrica, e conversam com vizinhos brasileiros, cuja comunicação lhes parece estranha. O Brasil é descrito enquanto um lugar lento, onde os dias são iguais, a língua parece se arrastar, e os cidadãos tendem a se contradizer, inserindo um “não” no final da frase. “Pode me ajudar? Posso não”. Por que, então, a vendedora de óculos dança sem parar? O que motiva a alegria no local onde “parece que é sempre Carnaval”? Em oposição, a China seria veloz, marcada por transformações diárias. 

Na cidade onde nada muda, as figuras deambulam tais quais zumbis, circulando por um limbo permanente. O longa-metragem sustenta uma catarse presa na garganta, que nunca chegará aos personagens, nem ao espectador. Ninguém grita, chora, goza, ri. Os sentimentos ficam presos nestes corpos amolecidos pelo calor e pelo sentimento de estagnação. Portanto, o humor jamais atinge a punchline, o instante de extravasar e se converter em expurgo. No final, não por acaso, é a câmera quem se afasta dos protagonistas, que jamais poderão partir.

O aspecto fluido e lânguido das cenas (uma visita despreocupada ao museu, o ato de abrir um guarda-chuva novo ou se sentar no banco ao lado da piscina) se contrapõe à estética do controle e da precisão. Wohlatz nunca permite que o ponto de vista, distanciado e crítico, se contamine pela malemolência da região. Os planos são fixos, longos, cuidadosamente compostos de modo a posicionar os protagonistas nos terços exatos do enquadramento. Nas ruas, há ruídos locais em tom mínimo, para que o isolamento dos personagens principais ainda domine o tom. 

A mise en scène jamais se permite extravasar, recorrer ao grotesco, ao exagerado, ao ridículo. Permanece um tanto fria, numa espécie de empatia não-participativa, nem cúmplice. Observa-se estas figuras com respeito, em detrimento de ternura ou piedade. Wohlatz demonstra um interesse mais próximo daquele de uma socióloga ou antropóloga do que uma conexão emotiva com o trio central. Assim, o resultado se distancia de denúncias panfletárias de qualquer tipo — a decisão de se focar em corpos marginais e invisíveis constitui um discurso político em si próprio.

Após o belíssimo O Futuro Perfeito (2016), a autora segue oferecendo um cinema estranho, no melhor dos sentidos. Trata-se de obras formalistas e rígidas, porém que jamais almejam uma beleza convencional, nem uma vaidade da direção. Ela ainda privilegia cores bege e cinzentas, em lugares de iluminação crua, onde retrata interações cotidianas. O aspecto próximo do documental (nas ruas do Recife, os personagens olham diretamente para a câmera; e os personagens possuem seus nomes reais) se confronta ao absurdo (os marinheiros bêbados do andar de cima).

Em especial, ela preserva um interesse raro pela língua e pela linguagem. No longa-metragem anterior, a personagem chinesa compartilhava suas ações iniciais ao chegar na Argentina: “Primeiro, eu dormi”. Difícil não estabelecer uma conexão com o novo projeto, falado em português, inglês, espanhol, alemão e mandarim. Há personagens chinesas se expressando em espanhol, enquanto o ator franco-argentino Nahuel Pérez Biscayart se comunica em mandarim. No bar da praia, enquanto tomam caipirinhas, a mulher taiwanesa e o sujeito argentino discutem a pronúncia correta de “mar” em alemão.

Wohlatz, cineasta alemã que viveu durante doze anos em Buenos Aires, segue encontrando na língua a transcrição ideal da condição estrangeira, sem qualquer senso de espetáculo nem fetiche da alteridade. Prefere filmar gente que come, anda, faz aulas, dorme (ou não consegue dormir). Entre a banalidade (o cotidiano) e a excepcionalidade (ser estrangeiro numa cidade de poucos turistas); entre o naturalismo (o despojamento estético) e a artificialidade (as cenas bizarras ou incongruentes), promove uma fricção de países, culturas e indivíduos, que jamais altera o funcionamento da comunidade ao redor. Observamos com atenção a vida de pessoas que, não fosse pela presença do dispositivo cinematográfico, talvez jamais fossem percebidas pelos olhos brasileiros.

Dormir de Olhos Abertos (2024)
8
Nota 8/10

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